Atualizada às 15h30
A crise na Ucrânia completa nesta sexta-feira (21/11) exatos 365 dias, embora esteja longe de se direcionar a uma resolução pacífica. Para especialistas consultados por Opera Mundi, um dos cenários mais prováveis é o congelamento do conflito em longo prazo. Voltar ao passado e insistir no debate de “uma nova Guerra Fria”, como muitos líderes mundiais sinalizam, seria cair em anacronismo na opinião dos entrevistados, pois as condições sociais são absolutamente diferentes.
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É preciso levar em conta, no entanto, que Ucrânia e Rússia têm uma identidade cultural e étnica marcante. Segundo Angelo Segrillo, professor de História da USP e autor do livro “De Gorbachev a Putin: a saga da Rússia do socialismo ao capitalismo”, russos e ucranianos eram um só povo, no chamado estado kievano, que perdurou até o século XII. “Historicamente, ambos mantiveram laços muito próximos. Isso criou entre eles uma relação de amor e ódio, dependendo do contexto e da época histórica”, explica Segrillo.
Efe
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Além disso, um retorno às origens é capaz de ajudar a compreender a história a partir de outra perspectiva. Como estudo da composição e da evolução histórica das palavras, a etimologia resgata raízes até mesmo políticas que podem explicar algumas características do atual conflito.
Por exemplo, na gramática russa, utiliza-se a preposição “v” (ou “в”, em cirílico) para se referir a países. Contudo, ao aludir à Ucrânia, o russo emprega a preposição “na” (ou “на”, em cirílico), que é usada para se referir a distritos ou regiões. Segundo russófonos, cerca de 60% das palavras ucranianas têm raiz russa.
Para a administradora armênia e russófona Ani Afyan, esse jogo de linguagem mostra que a Ucrânia, de alguma forma, ainda faz parte do território russo no imaginário nacional. Assim como a Armênia, a Ucrânia integrou durante muito tempo a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). “Essa é uma simples prova de que somos todos ‘irmãos e irmãs’ em um passado recente, em uma mesma nação: mesma língua, mesma terra e mesma história”, comenta.
No entanto, há controvérsias sobre o emprego dessas preposições. Para o jornalista brasileiro Sandro Fernandes, correspondente de Opera Mundi em Moscou, a Ucrânia é considerada parte do território de Vladimir Putin pelos cidadãos russos, ora em sentido fraternal, ora imperialista.
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Já de acordo com a estudante russa de Relações Internacionais Sofia Blakova, muitos ucranianos não concordam com essa forma de escrita e já tentaram trocar pela preposição “v”. “Isso não parecia ser um grande problema até a atual crise. Acredito que esse debate tenha surgido em virtude da situação política”, pondera.
Segundo Lada Radomanova, estudante de origem russo-croata de linguística e de línguas eslavas da USP, tal fenômeno acontece, pois os russos sempre enxergaram a Ucrânia como mais uma parte do império russo e não como um país independente. “Essa visão foi ainda mais forçada na época soviética, quando a região da Ucrânia era considerada um distrito onde se plantavam cereais. Por isso que se falava ‘na Ukraine’”, explica.
De todo modo, Radomanova alega que atualmente, nas escolas, na mídia e nos dicionários, essa atitude está sendo corrigida e não aparece mais a preposição “na”, mas sim como “v”.“É claro, na fala das pessoas, majoritariamente pessoas mais velhas, mantêm se a forma “na”, mas isso é simplesmente pelo costume. Talvez daqui a alguns anos a situação, ao menos a linguística, fique melhor. Vamos esperar” , completa.
O próprio movimento pró-União Europeia que começou no dia 21 de novembro de 2013, intitulado “Euromaidan” em Kiev, também apresenta um ponto de contato lingüístico. Em ucraniano, “maidan” significa praça. No entanto, a língua tem duas expressões para designar o mesmo substantivo: “plosha” (“площа”) e “maidan” (“майдан”). Enquanto a primeira deriva do russo (“ploshad” ou “Площадь”), a segunda é singularmente ucraniana.
Vitor Sion/Opera Mundi
“Euromaidan”, nome como ficou conhecido o movimento de novembro do ano passado, é referência à Praça Maidan, a principal de Kiev
Para estudiosos como o brasileiro Carlos Serrano, cuja tese de doutorado pela Universidade de Lisboa é centrada na atual crise da Ucrânia, trata-se de um modo de contestação russa e reafirmação da autonomia ucraniana.
Além disso, a própria palavra “Ucrânia” tem uma raiz russa que significa, em português, algo como margem ou borda. Para Serrano, isso explica como a região ucraniana passou por uma série de divisões de povos e fronteiras ao longo dos séculos. “A Ucrânia representa a fronteira entre o leste e o oeste do continente, que só foi reconectada depois da Segunda Guerra Mundial. Por isso, temos concepções muito distintas em cada parte do país”, argumenta.