O Ministério das Finanças da China, com auxílio dos bancos do país, afirmou recentemente que vendeu títulos de dívida denominados em dólar no mercado financeiro de Riad, capital da Arábia Saudita. O valor anunciado da emissão foi em US$ 2 bilhões (cerca de R$ 12 bilhões).
Esta foi a primeira transição de título soberano da China emitido e negociado no Oriente Médio. A venda significa que Pequim emitiu uma “dívida externa” em dólares ao invés de emitir “dívida interna” na sua própria moeda, a Renminbi.
Ainda segundo o Ministério das Finanças, por conta da resposta de investidores internacionais em relação aos títulos, os valores da emissão atingiram US$ 39,73 bilhões (cerca de R$ 215 bilhões), “o que é 19 vezes o valor” original emitido, de acordo com o jornal Global Times.
De acordo com o periódico, a emissão destes títulos “destaca a crescente internacionalização do mercado financeiro da China e sua influência global”, já que, ao realizar essas vendas, Pequim “não apenas fortaleceu sua posição no sistema financeiro global, mas também contribuiu para o desenvolvimento econômico” do mundo.
Vale destacar que a transição chinesa foi auxiliada pelo Deutsche Bank, o maior banco da Alemanha. Segundo comunicado da instituição, a emissão foi a “maior subscrição entre todas as emissões em dólar no mercado de títulos da Ásia até o momento no ano de 2024”.
“O Deutsche Bank tem apoiado ativamente a abertura contínua dos mercados de capital na China. Como uma instituição líder nos mercados de capital de dívida da China, o Deutsche Bank está totalmente comprometido em contribuir para a internacionalização do RMB por meio de sua participação ativa nos mercados onshore e offshore”, diz a nota.
Uma mensagem para o futuro governo Trump?
Para o economista Pedro Faria, a emissão, “mesmo que bem pequena para o tamanho da China”, aponta também para um “experimento” chinês. Isso é: “indica a possibilidade de um sistema financeiro que, apesar de usar o dólar, não passa pelo controle dos Estados Unidos”.
A Opera Mundi, Faria analisou que a emissão de títulos da China oferece uma “alternativa” aos países que, assim como Riad, acumulam reservas em dólar por vendas de commodities para os Estados membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e só conseguem manter esse dinheiro no sistema financeiro da aliança militar.
“O experimento feito pela China oferece uma alternativa: os vendedores de petróleo podem estacionar seus dólares em um investimento oferecido pelo governo chinês. Dessa forma, eles têm a segurança de manter investimentos em dólar, não em moeda chinesa, mas também estão livres da influência dos Estados Unidos, que é exercida por meio de ameaças/oportunidades sobre os investimentos dos sauditas e outros países nos Estados Unidos e na Europa”, disse.
Além disso, segundo o economista, com essa abertura externa da China há um possível caminho parar o fim da utilização do sistema financeiro controlado pelos Estados Unidos, já que “torna inefetivas as armas norte-americanas, como sanções, embargos ou chantagem diplomática em geral”.
“Mais do que ‘desdolarização’ (deixar de usar dólar), é importante ‘desotanizar’ as trocas globais, dada a instabilidade que os EUA e associados promovem no mundo”, afirmou.
O especialista em negócios internacionais francês Arnaud Bertrand analisou que a ação da China pode ser uma “mensagem” ao futuro governo de Donald Trump.
Isso por que, para ele, a emissão chinesa tem como pano de fundo mostrar a Washington que Pequim pode “efetivamente usar o próprio dólar contra eles”. Na visão de Bertrand, há consequências no sentido de competição no sistema financeiro mundial, com o Tesouro dos EUA e até prejudicar o financiamento de gastos do governo norte-americano.
À reportagem, Faria compreende que o raciocínio de Bertrand é “interessante”, mas avalia que “está longe de acontecer” uma generalização do “experimento financeiro sino-saudita”.
“Com o declínio industrial dos Estados Unidos e da Europa, os países do Sul Global mantém mais relações produtivas com a China, mas ainda mantêm muitas relações de dependência financeira (controle da produção local, dívida externa) com Estados Unidos e associados. Se o experimento se generalizar, os países pobres endividados poderiam refinanciar suas dívidas externas via China com países que tem poupança externa como a Arábia Saudita, se desvinculando nesse âmbito dos Estados Unidos. Isso concentraria a demanda por dólares na China (chineses vendem manufaturas para os EUA e obtém dólares), que operaria o novo sistema-dólar sem os Estados Unidos. As reações dos EUA tenderiam a isolar ainda mais o país. A única reação viável seria se reindustrializar e voltar a hegemonizar o comércio com o Sul Global, mas os Estados Unidos perderam a base produtiva para isso, então tende a ser uma briga que eles vão perder contra a China, até porque, o capital norte-americano está dividido. Trump está justamente apostando nessa saída, mas é muito arriscado”, afirmou.