O cenário político na França ficou bem movimentado após o resultado do primeiro turno das eleições para o legislativo do país. Com a extrema direita do Reagrupamento Nacional (RN) vitoriosa nesta primeira fase, obtendo 34% dos votos, espectros políticos diferentes tentam agora barrar o mesmo sucesso na segunda etapa.
A estratégia pensada é de uma construção de “frente republicana”, que une a aliança de centro-direita do presidente francês Emmanuel Macron com a coalizão de esquerda Nova Frente Popular (NFP). A agência de notícias internacional France-Press divulgou, nesta terça-feira (02/07), que mais de 200 candidatos, entre membros da NFP e do grupo de Macron, já se retiraram da disputa.
Flavia Loss, professora de Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política do Estado de São Paulo (FESP-SP), comentou no jornal Central do Brasil sobre o processo eleitoral e esse movimento para o segundo turno, marcado para o próximo domingo (07/07).
Dúvidas sobre a união foram geradas por ambos os blocos. Flávia explica que algumas figuras políticas, como Jean-Luc Mélenchon, um dos principais líderes da NFP, não é unanimidade entre a esquerda da França e que virou alvo de muita gente na campanha, principalmente por declarações feitas sobre a guerra em Gaza.
A professora avalia ainda que os resultados das primeiras eleições foram humilhantes para Macron. Segundo ela, mesmo com o movimento de forças antagônicas para frear os ultradireitistas, o líder francês ainda corre o risco de ter que lidar com um primeiro-ministro de outra ideologia.
Leia abaixo a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Primeiro, explique como funciona o processo eleitoral legislativo na França.
Flavia Loss: O processo todo começa quando o presidente Macron é derrotado nas eleições para o Parlamento Europeu. Isso tem mais de um mês, e aí a extrema direita teve um avanço, ou seja, conquistou várias cadeiras no Parlamento Europeu, que é o órgão da União Europeia, supranacional. Esse tipo de eleição europeia acaba servindo como um referendo para os presidentes de cada país do bloco. E isso aconteceu com o Macron. Então, o eleitor e a eleitora franceses acabaram votando contra o Macron nessas eleições supranacionais para demonstrar insatisfação com ele domesticamente. A partir disso, o Macron, para fazer uma tentativa de mudar esse cenário, convoca eleições legislativas na França. E foi aí que essa confusão toda começou.
O que acontece agora? Cada distrito francês, e são 577, elegerá um deputado. O deputado que obtiver mais de 50% dos votos é eleito, mas isso é muito raro de acontecer. Por isso que tem dois turnos nas eleições legislativas francesas. E o próximo turno vai acontecer no próximo domingo [7 de julho]. O cenário é que a extrema direita está avançando muito. As pesquisas de opinião pública mostram que eles vão, sim, se tudo continuar do jeito que está hoje, vencer e conquistar várias cadeiras na Assembleia Nacional Francesa, que é equivalente à câmara baixa [Câmara dos Deputados] aqui no Brasil.
Isso vai levar ao seguinte: o partido ou coalizão que tiver mais cadeiras é quem elege o primeiro-ministro. Porque a França é um sistema semipresidencialista. E provavelmente o Macron vai ter um primeiro-ministro que é contrário às suas ideias, é de outro partido e de outra ideologia. Essa situação é um tanto inédita na França e abre o caminho para incerteza. A gente não sabe o que vai acontecer.
No segundo turno, deve haver uma certa união entre a esquerda e o centro contra a extrema direita. Muitos candidatos já retiraram o nome da disputa, a maioria de esquerda. Se a esquerda teve mais votos do que o centro no primeiro turno, por que há mais candidatos de esquerda desistindo da disputa?
O que acontece é que a esquerda está tentando fazer um movimento, apesar de estar indo bem no primeiro turno das eleições legislativas, de diminuir suas candidaturas para concentrar os votos nos candidatos que têm condições de vencer a extrema direita. Essa é uma tentativa, como a gente chama, de frente ampla com o centro, que sai absolutamente derrotado destas eleições, mas para barrar esse avanço da extrema direita na Assembleia Nacional.
Apesar do avanço da extrema direita, a esquerda teve um bom desempenho também. É possível que esse bom desempenho da esquerda se converta em capital político suficiente para as eleições presidenciais?
Esse cenário ainda é muito incerto. É difícil falar isso agora, porque a gente não sabe o que vai sair do governo assim que esse resultado das legislativas forem anunciados. A gente não sabe se a esquerda vai continuar e conseguir fazer uma boa posição, caso a gente tenha um primeiro-ministro de extrema direita, que provavelmente seria o grande pupilo da Marine Le Pen, que é o Jordan Bardella. Lembrando que a esquerda também é fragmentada.
O que a gente acredita é que ela, sim, se unirá contra um possível governo do primeiro-ministro Jordan Bardella, se isso acontecer, para fazer frente a esse cenário de uma extrema direita no governo francês. Eles estão bem assustados e até por isso que o campo democrático está se unindo ao redor da esquerda para barrar esse avanço.
Há uma relação entre o crescimento da extrema direita com o bom desempenho da esquerda? Mais do que a falsa comparação que faz Macron – dizendo que ambos são extremos -, é possível que as propostas da frente de esquerda sejam consideradas as únicas possíveis de barrar essa ultradireita?
Com certeza. Acredito nisso, de uma tentativa das forças democráticas, mesmo de pessoas que votariam no centro, irem mais à esquerda por acreditarem que são as únicas propostas capazes de vencer a extrema direita. Porque o centro mesmo enquanto campo político está totalmente derrotado. Essas eleições foram humilhantes para o Macron e, por isso, ele além de atacar a extrema direita, ataca a esquerda, colocando no mesmo patamar. O que ele e os seus partidários têm dito é que são dois lados da mesma moeda, ele equipara os dois campos justamente para tentar fazer colocar mais força no seu campo, que é o centro, mas a gente sabe que não é assim e que o centro está totalmente esvaziado.
Então, os eleitores que estão preocupados com o avanço da extrema direita se voltam para a esquerda e para essa possibilidade, de que não ocorra essa vitória esmagadora da extrema direita na Assembleia Nacional. Porque isso mudaria muito o panorama político francês, inclusive os direitos, que é o que mais preocupa o eleitor e a eleitora franceses.
Falando sobre a figura do Jean Luc-Mélenchon, que é liderança do partido de esquerda França Insubmissa, que faz parte da frente de esquerda. A extrema direita já começou a campanha do medo colocando o Mélenchon como espantalho, o que já era esperado. Mas o centro tem feito a mesma coisa, inclusive equiparando o partido França Insubmissa à extrema direita. Conta pra gente quem é Jean-Luc Mélenchon e por que ele se tornou essa figura tão “temida”.
O Mélenchon é um ex-senador do Partido Socialista e ele teve um bom desempenho nas últimas eleições presidenciais, mas teve algumas divergências com a esquerda. Ele não é uma unanimidade entre a esquerda francesa. Até aí, tudo bem, mas nesse cenário novo em que a extrema direita avançou, ele se tornou uma espécie de bode expiatório tanto da extrema esquerda quanto do centro. E agora tá todo mundo batendo nele nas campanhas, ele virou o grande espantalho aí para ser criticado.
E o que tem sido usado contra ele são declarações que ele deu. Ele tem passado por um escrutínio, todo mundo pegando cada palavra, cada declaração. O que tem pesado muito é a questão de algumas declarações que ele fez sobre a guerra na Palestina. O que estão dizendo? Que ele não se colocou totalmente a favor dos reféns israelenses. A gente já viu esse filme. Isso tem acontecido com ele também, ele tem sido muito criticado por isso. E por outro lado, por não ter defendido suficientemente os palestinos também.
Ele está nesse fogo cruzado e a gente não sabe qual vai ser a reação dele. Ele tem chamado os franceses e francesas para votarem contra a extrema direita, independente da ideologia, do espectro político. Ele tem feito esse apelo e agora a gente vai ver qual vai ser a reação dele, como vai ficar esse cenário nos próximos dias.