Não basta solicitar documentos que ninguém quer que apareça. É preciso encontrar formas de forçar a aparição destes papéis. Esse é o principal alerta que o pesquisador e escritor norte-americano Peter Kornbluh faz à Comissão da Verdade brasileira. Para ele, o órgão recém-criado para investigar crimes cometidos pela ditadura deve “ser agressiva na busca por registros militares e, se os militares não cooperarem, deve, então, estar preparada para dar publicidade geral, responsabilizando os que obstruírem os registros desta história negra”.
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Kornbluh é uma das maiores autoridades em abertura de arquivos secretos – da crise dos mísseis em Cuba, em 1962, até a detenção do general chileno Augusto Pinochet, em 1998, passando pela crise do episódio Irã Contras e um punhado de outros capítulos obscuros da história da Guatemala, Argentina, Bolívia, Paraguai, onde o governo norte-americano esteve envolvido.
Ao longo dos últimos 30 anos, este escritor e pesquisador de cabelos brancos e gestos suaves vem jogando luz sobre registros históricos que muitos governos preferiam ter deixado repousando eternamente no fundo de uma gaveta escura. Kornbluh está à frente da organização Arquivos da Segurança Nacional, fundada em 1985 em Washington para requerer, interpretar e publicar documentos secretos dos EUA liberados para consulta pública sobre os golpes na América Latina.
Ele conversou com o Opera Mundi em junho, quando esteve no Brasil para encontrar-se com os membros da Comissão da Verdade do Brasil. Em seguida, respondeu às seguintes perguntas:
Opera Mundi: A maioria dos analistas, acadêmicos e jornalistas brasileiros considera o papel dos EUA na região como fator decisivo para entender os golpes na América Latina. Mas o senhor diz que o papel do Brasil nestes contextos ainda precisa ser melhor entendido e que a Comissão da Verdade pode revelar quanto o Brasil trabalhou nos bastidores para dar apoio a todos esses ditadores, exportando técnicas de tortura e até mesmo oferecendo apoio material e financeiro a eles. O sr. poderia explicar mais detalhadamente como e quais documentos provariam isso?
Peter Kornbluh: O Brasil era uma potência regional que exercia influência militar, econômica e política significante no Cone Sul, particularmente diante de seus vizinhos Uruguai, Paraguai, Bolívia e Chile. Como, quando e porque essa influência foi exercida é algo que está gravado em documentos ainda secretos que precisam ser revelados. Nós sabemos, por exemplo, que o presidente (brasileiro Emílio Garrastazu) Médici e o presidente (dos EUA Richard) Nixon mantiveram um canal de comunicação ultrassecreto sobre a intervenção brasileira no Chile e, possivelmente, em outros países do Cone Sul no início dos anos 70. Algum dia essas mensagens serão recuperadas e ajudarão a reescrever a história do papel imperioso que o Brasil desempenhou na região.
OM: As autoridades militares brasileiras dizem que todos os documentos relativos à Guerrilha do Araguaia já foram destruídos no passado. Como uma Comissão da Verdade pode ser efetiva diante de obstáculos como este? O que o sr. sugeriria aos brasileiros, com base na sua experiência?
PK: Muitos militares em outros países latino-americanos declararam que documentos desapareceram, assim como muitas de suas vítimas. Mas em quase todos os países registros são encontrados, lançando luz considerável nos crimes de direitos humanos. Na Guatemala, a Comissão transformou num assunto o fato de os militares negarem informações, esconderem documentos. A publicidade disso fez com que alguns militares guatemaltecos dessem passos significantes adiante, liberando mais documentos sobre o papel do alto comando nas atrocidades massivas. A Comissão de Verdade do Brasil deveria ser agressiva na busca por registros militares e, se os militares não cooperarem, deveria então estar preparada para dar publicidade geral, responsabilizando os que obstruírem os registros desta história negra.
OM: O número de assassinatos, desaparecimentos forçados, torturas e outros crimes cometidos no Brasil entre 1964 e 1979 são muito menores quando comparados com os ocorridos no Chile e na Argentina no mesmo período. Como pesquisador que trabalhou em todos estes países, o sr. considera que o Brasil viveu uma “ditabranda” em vez de uma “ditadura”, como dizem alguns brasileiros? Ou simplesmente o Brasil tinha uma política mais seletiva e eficiente de matar pessoas?
PK: Para as vítimas de crimes de direitos humanos e seus familiares não importa se os mortos e desaparecidos foram 500 ou três mil. Verdade e justiça são condições universais para se fechar todo e qualquer caso de violação dos direitos humanos. Se a Comissão da Verdade for bem sucedida, dará aos brasileiros os registros dos crimes contra os direitos humanos cometidos no Brasil, além da estratégia, das políticas e das operações por trás destes abusos.
OM: O sr. poderia falar um pouco mais sobre sua experiência histórica em lidar com arquivos secretos de ditaduras militares no mundo?
PK: Depois que o general Augusto Pinochet foi detido em Londres em 1998, eu estive pessoalmente envolvido na campanha para pressionar o presidente Bill Clinton a reveler documentos secretos da CIA, do Departamento de Defesa, do Departamento de Estado, do Conselho de Segurança Nacional, do FBI etc, relativos à repressão durante a ditadura, assim como sobre o papel dos EUA no Chile. Nós conseguimos a liberação de 24 mil registros até então inéditos. Nós aplicamos este mesmo modelo para o caso da Argentina, onde minha equipe deu assistência para a revelação de mais de cinco mil informações até então reservadas da ditadura militar. A ironia poética do envolvimento dos EUA na América Latina é que isso criou um rico acervo que pôde ser usado para revelar quais violações dos direitos humanos foram cometidas no passado e quem as cometeu. Esperamos conseguir informações semelhantes no Brasil nos próximos meses.
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