De decisões políticas conduzidas por um curandeiro xamanista à manipulação de projeções eleitorais, o decreto da lei marcial foi apenas a gota d’água para os habitantes sul-coreanos que vivenciam o governo do presidente Yoon Suk Yeol, do Partido do Poder Popular (PPP), da extrema direita, há dois anos.
A formalização do pedido de impeachment pela oposição nesta quarta-feira (04/12), com votação marcada para o próximo sábado (07/12) pela Assembleia Nacional, não foi um fato inédito. Entretanto, agora, população e oposição do país expressam maior confiança no objetivo de conseguir reunir os 200 votos necessários no Parlamento para destituir o chefe de Estado mais impopular da história recente da Coreia do Sul.
Quando Yoon anunciou a lei marcial, justificou a sua imposição referindo-se à presença de “forças descaradas pró-Coreia do Norte e anti-estatais” no país, culpando-as de representarem uma ameaça à democracia nacional.
A divisão das Coreias, produto do primeiro confronto de grande escala da Guerra Fria, ainda nos anos 1950, segue sendo portanto um tema central na península. Mas mesmo neste cenário, Yoon exagerou e passou a “atirar para tudo quanto é lado”, na avaliação dos oposicionistas, numa tentativa desesperada de permanecer no cargo.
A Coreia do Sul deixou de ser uma ditadura em 1987, e a decretação da lei marcial gerou forte reação do Parlamento, onde a oposição abriu o pedido de impeachment por violação da Constituição. Yoon também se tornou alvo de uma investigação policial por “insurreição”, crime que não coberto pela imunidade presidencial e que pode ser punido com a prisão perpétua ou pena de morte.
A oposição conta já com 192 votos no Parlamento e precisa conquistar apenas 8 deputados da situação para aprovar o processo de impeachment, que resulta no imediato afastamento do presidente. Ao todo, são 300 deputados na Assembleia coreana e a aprovação do processo de impeachment exige uma maioria qualificada de dois terços da Casa.
Os escândalos que levaram Yoon ao poder
O presidente sul-coreano Yoon Suk Yeol, de 60 anos, está envolvido em uma série de polêmicas desde o início de seu mandato, em maio de 2022. Ele é considerado novato na política, uma vez que passou 27 anos de sua vida na Promotoria antes de se candidatar à Presidência.
Ele foi indicado pelo ex-presidente Moon Jae In, do Partido Democrata da Coreia, que, por sua vez, assumiu em 2017 o lugar deixado por Park Geun Hye após ser destituída do cargo por abuso de poder, suborno e corrupção. Na ocasião, a ação legal que removeu Park foi liderada pelo próprio Yoon.
A queda de Park foi um marco na história do país, o que fez de Yoon uma figura quase heroica para a direita e a extrema direita. Seu posicionamento anti-Coreia do Norte e seus discursos patrióticos também atraíram, em especial, o público mais idoso.
Após ganhar as eleições presidenciais de 2022, Yoon assumiu o cargo. E foi a partir de seus primeiros passos como um político à frente do país, envolvendo-se em escândalos e controvérsias, que seus índices de aprovação passaram a despencar. A agência de pesquisas Gallup indicou que suas taxas de aprovação caíram para 17% em novembro, o pior desde o início de seu mandato – desencadeando pedidos de impeachment muito antes de situações como a decretação da lei marcial nesta semana.
Transferência da Casa Azul, a sede governo
Sob o governo de Yoon, a Casa Azul, fundada em 1948, deixou de ser a residência oficial de um presidente na Coreia do Sul. Seguindo as orientações de um curandeiro xamanista antes de assumir o Executivo, Yoon transferiu o seu escritório oficial do distrito de Jongno para Yongsan, com um custo registrado pela “Declaração abrangente sobre o uso de fundos de reserva para o ano fiscal de 2023” do governo de, atualmente, quase 62 milhões de dólares.
Quando o gabinete presidencial realizou tal mudança, o Ministério da Defesa Nacional e a base militar dos Estados Unidos, que estavam originalmente localizados em Yongsan, também tiveram de ser realocados. Nesse sentido, estipula-se que o custo total tenha somado mais que o dobro do que o emitido oficialmente em relatório.
Relações diplomáticas: Estados Unidos e… Japão!
Além dos Estados Unidos, Yoon reforçou seus laços amistosos com o Japão. A aproximação foi duramente criticada pela população nacional, que acusa o presidente de “ignorar” os fatos históricos dos tempos em que o país vizinho colonizou as terras coreanas e cometeu crimes de guerra, incluindo o estupro coletivo de mulheres, sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial.
Há certo consenso entre os sul-coreanos acreditam que nunca houve um reparo histórico “honesto” por parte das autoridades japonesas, muito menos um pedido formal de desculpas pelas atrocidades cometidas no passado.
Em relação à Coreia do Norte, Yoon assumiu uma posição linha-dura contra o governo de Kim Jong Un, suspendendo as tentativas de seu antecessor, Moon Jae In, de estabelecer, na medida do possível, uma relação menos conturbada entre os países, por meio da realização de cúpulas e encontros. Avalia-se que seus discursos de ódio fomentaram uma relação hostil com Pyongyang e distanciaram ainda mais os dois países.
Kim Keon Hee, a esposa
Grande parte dos escândalos que envolvem Yoon se concentram em torno de sua esposa, Kim Keon Hee, que é acusada de corrupção, manipulação de ações e tráfico de influência. O caso mais emblemático ocorreu em 2022, quando a primeira-dama foi flagrada, por uma câmera escondida, recebendo secretamente uma bolsa de grife da marca Dior de um pastor norte-americano.
A lei anticorrupção sul-coreana proíbe que cônjuges de funcionários públicos recebam artigos que excedam o valor de um milhão de won (1 milhão equivale a quase US$ 720, na cotação atual). No entanto, o valor do produto recebido pela primeira-dama excedeu três milhões de won (mais de US$ 2 mil). Constitucionalmente, se a lei for violada, a pessoa é condenada a três anos de prisão, com um adicional de 30 milhões de won (US$ 21.600) em multas.
Os valores não são tão altos para os brasileiros, que viram as joias de Jair Bolsonaro serem contados em R$ 6,8 milhões, o que mesmo hoje, com a a subida do dólar, daria mais de US$ 1 milhão. Mas o fato em si se reforçou por Kim Keon Hee ser conhecida internacionalmente por seu estilo de vida luxuoso. Dos pés até a cabeça, ela costuma se vestir com roupas de grife, o que a fez ser duramente criticada pela população sul-coreana pela ostentação e por seus gastos excessivos, principalmente, durante as viagens oficiais realizadas por Yoon.
São raras as vezes que Kim não acompanha o presidente para uma agenda no exterior, como é o caso que aconteceu recentemente na Cúpula dos Líderes do G20, realizada no Rio de Janeiro, no Brasil. O evento global entre 18 e 19 de novembro foi celebrado dias depois que o mandatário sul-coreano proferiu um discurso público pedindo desculpas pelas polêmicas que envolviam a sua companheira, principalmente no caso da bolsa da Dior.
Em 8 de novembro, Yoon reconheceu que “Kim Keon Hee deveria ter se comportado melhor”. No entanto, insistiu que sua “representação foi excessivamente demonizada”, acrescentando que algumas das alegações contra ela foram “exageradas”. O presidente disse que criaria um escritório para supervisionar as funções oficiais da primeira-dama, mas rechaçou um pedido de investigação sobre suas atividades.
Myung Tae Gyun Gate: pesquisas eleitorais fraudulentas
Recentemente, em 5 de setembro de 2024, o portal sul-coreano News Tomato publicou uma apuração exclusiva revelando o que foi considerado pela imprensa local como um dos escândalos políticos “mais graves” que poderia invalidar o cargo presidencial de Yoon. O veículo revelou informes expondo o nome de Myung Tae Gyun, um consultor político responsável pelo Future Korea Research Institute, uma agência de pesquisas eleitorais.
O veículo acusou Myung de ter conduzido pesquisas de opinião ilegais nos últimos quatro meses antes das eleições de 2022, a fim de eleger o então candidato Yoon à Presidência em troca de favores políticos. A agência em questão publicava relatórios com falsas projeções mostrando que Yoon estava à frente do segundo colocado, Lee Jae Myung, atual líder do Partido Democrata da Coreia, de centro, com o intuito, de acordo com o News Tomato, de induzir a população indecisa a depositar o voto para o político conservador.
As eleições de 2022 foram apertadas. O resultado final do pleito mostrou que Yoon ficou em primeiro com 48,59% dos votos, enquanto Lee obteve 47,79%, o que configura uma margem muito pequena e sugere que o candidato da atual oposição poderia ter tido a chance de conquistar o cargo caso não houvesse nenhuma a divulgação de dados falsos. Este caso foi nomeado como o “Myung Tae Gun Gate”.
Partido do presidente diz que conseguirá mantê-lo no cargo
O líder da bancada parlamentar partido que apoia Yoon, o PPP (Partido do Poder Popular), Choo Kyung-ho adotou a estratégia de defender o presidente, mas não suas medidas. Segundo ele, os 108 deputados do partido de situação votarão contra o impeachment. Isso, não entanto, não significaria “defender a lei marcial inconstitucional do presidente”.
Se o processo de impeachment for aberto, o presidente é afastado e substituído pelo primeiro-ministro. A Corte Constitucional do país tem, então, 180 dias de prazo para analisar se houve ou não violação da Constituição. No caso de o tribunal concluir que Yoon deve ser definitivamente afastado, novas eleições presidenciais serão convocadas e deve ocorrer em até 60 dias depois do veredito.