No mundo das estatísticas, Cuba até que vinha fazendo a lição de casa desde as mudanças adotadas em seguida ao colapso da União Soviética. Após perder 34% de seu PIB (Produto Interno Bruto) entre 1990 e 1993, o país tinha alcançado um crescimento médio de 4,5% entre 1994 e 1999. Pulou para 5,6% em 2000, retornou a 3% no ano seguinte e zerou em 2002. Voltou ao patamar de 3% entre 2003 e 2004. Acelerou para 8% em 2005, bateu o recorde com 9,5% em 2006, cresceu a 6,5% em 2007, escorregou para 4,3% um ano depois. Tragada pela crise mundial e três sucessivos furacões, Cuba capengou em uma média de 1,5% entre 2009 e 2010. Todos esses dados são do insuspeito CIA World Factbook.
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Esses números áridos, sem rosto ou cor, fazem parte do diagnóstico que levou o presidente Raúl Castro a deslanchar, a partir de 2011, um dos mais ambiciosos programas de reformas desde a vitória da revolução cubana. No VI Congresso do Partido Comunista, em abril do ano passado, foi sacramentado o nome de atualização do modelo socialista às políticas de mudança então decididas. Apesar do conceito cauteloso, as medidas têm grandes objetivos. E indica um novo olhar sobre a história da economia cubana.
Agência Brasil
Alarcón: “precisamos entender qual o socialismo possível, capaz de trazer desenvolvimento e prosperidade”
“O socialismo não é a propriedade pública de todos os meios de produção”, afirma Ricardo Alarcón, presidente da Assembleia Nacional do Poder Popular (parlamento cubano) e alto dirigente do Partido Comunista. “A luta política e nosso próprio voluntarismo conduziram a exageros no passado, que precisam ser retificados. Não podemos mais compreender o empreendedorismo privado, sob controle do Estado, apenas como uma concessão temporária. Essa atividade deve ter seu lugar em nosso modelo socialista.”
Alarcón se refere a um momento específico, quando o governo de Fidel Castro desatou, nos idos de 1968, a chamada “ofensiva revolucionária”. Por influência da experiência soviética e pelo apoio que parte dos pequenos empresários dava aos núcleos saudosos do antigo regime, praticamente toda a propriedade passou às mãos do Estado. Barbearias, cabeleireiros, restaurantes, bares, mercearias, oficinas de reparo: quase todos os setores foram encampados pelo poder público.
Os custos desse gigantismo estatal, aos quais se somavam verbas para fundar e manter o sistema de bem-estar social, um dos mais amplos do planeta, afetavam fortemente a capacidade de investimento na infraestrutura e no desenvolvimento das atividades econômicas. O modelo funcionou bem enquanto pode contar com a poupança externa representada pela União Soviética e os demais países socialistas. Entrou em colapso quando essa fonte de financiamento desapareceu. Ganhou uma sobrevida quando as relações com Venezuela, China, Rússia e Brasil repuseram parte dos recursos internacionais perdidos.
Sinal de alerta
Mas o fraco crescimento do triênio 2008-2010 acendeu a luz vermelha. “Sem aprofundarmos e acelerarmos as reformas iniciadas nos anos 1990, não teremos como resolver os problemas estruturais”, analisa o deputado Osvaldo Martinez, presidente da Comissão de Assuntos Econômicos do Parlamento e diretor do Centro de Investigações da Economia Mundial. “Precisamos atrair mais capital internacional, expandir o trabalho por conta própria, reduzir os gastos estatais com custeio e melhorar a eficiência econômica.”
Yenni Muoña/Opera Mundi
Uma das principais mudanças proporcionadas foi a permissão do trabalho por conta própria, como para cabeleireiros
Um dos principais formuladores das reformas emergenciais dos anos 1990, Martinez não hesita em contestar alguns dogmas do passado: “O pleno emprego não é suportável pela economia estatal”, afirma. Essa crença levou Raúl Castro a planejar o corte de até um milhão de empregos públicos, paulatinamente absorvidos nas atividades privadas que estão sendo liberadas. “Não estamos fazendo uma terapia de choque, mas temos que cortar todas as gorduras possíveis”, insiste Martinez. “O que precisamos é melhorar a qualidade orçamentária do Estado e das empresas, para aumentar a poupança interna e os investimentos necessários para alavancar nossa economia.”
A liberação de centenas de atividades pa ra exploração de empreendedores privados, que já ultrapassam os 500 mil registros, segundo o Ministério do Trabalho, vai além de um mecanismo compensatório para os cortes de pessoal nas instituições estatais ou de uma ferramenta para ampliar a oferta de serviços. “Precisamos fortalecer o mercado interno, fundamental para a diversificação de nossa produção industrial”, aponta Martinez. “O empreendedorismo é um fator permanente nessa estratégia, um instrumento facilitador do socialismo.”
Foco das reformas
O pacote de medidas ultrapassa, e muito, a reforma do sistema de trabalho. Mais terras foram entregues a camponeses, com liberdade para explorá-las individualmente ou de forma cooperativa. Atualmente cerca de 50% dos alimentos consumidos na ilha são importados. Se parte dessas compras puder ser substituída por produção interna, a economia de divisas será formidável.
Cubaencuentro.com
“O pleno emprego não é suportável pela economia estatal”, diz Osvaldo Martinez (d), um dos principais nomes em Cuba
Restabeleceu-se o direito de compra e venda de imóveis, ainda que tenham sido mantidas regulamentações que impedem a concentração da propriedade urbana. Também foram abolidas limitações para aquisição de carros, celulares, computadores e outros produtos eletroeletrônicos, bem como proibições para que os cubanos possam se hospedar em hotéis pagos em peso conversível. “Eram medidas administrativas destinadas a controlar a desigualdade social, provocada pela existência de duas moedas. Algo como, se não podem todos, não pode ninguém”, explica Martinez. “Viraram obstáculos para a expansão econômica e o incentivo ao trabalho, por isso foram extintas.”
As empresas estatais e mistas igualmente estão abrangidas pelos ajustes. Sua autonomia foi ampliada, mas progressivamente irão perdendo subsídios e terão que se virar com as próprias pernas. Se derem prejuízo, poderão ser fechadas ou incorporadas por outras mais rentáveis. “O Estado continuará a ser o ente planificador e regulador”, salienta o professor Joaquin Infante Ugarte, diretor do Orçamento Nacional entre 1976-1991 e colaborador de Ernesto Che Guevara quando o argentino presidiu o Banco Central cubano. “Mas estamos substituindo os mecanismos administrativos pelos econômico-financeiros. Se uma determinada empresa não conquistar mercado, não demonstrar eficiência e não obtiver rentabilidade, deixará de existir.”
Outro objetivo das reformas é cr iar um sistema tributário equilibrado, que impeça a excessiva concentração de renda através de impostos progressivos sobre a renda e a propriedade, ao mesmo tempo em que amplia a base de arrecadação. “Os cubanos passaram a achar que era parte das conquistas da revolução não pagar impostos”, ironiza Martinez.
Os novos empreendedores, muitos deles antes trabalhando ilegalmente, agora terão que pagar taxas para licenciar suas empresas e impostos conforme a envergadura de suas atividades. Há bastante choro e ranger de dentes, mas o fato é que a nova época não oferece delícias sem dores. “Nossa revolução foi muito paternalista”, afirma Infante Ugarte. “Não podemos confundir igualdade de direitos e oportunidades com igualitarismo. Mas também tem o outro lado: quem g anha mais pagará mais impostos.”
Yenni Muoña/Opera Mundi
O chaveiro é outro exemplo de “contrapropista”, os trabalhadores autônomos
O ovo de Colombo, no caso, é limpar as contas do Estado de custos improdutivos e engordá-las com receita tributária, rentabilidade de suas empresas e substituição de importações. O fortalecimento dos fundos públicos, em aliança com a integração regional e a atração de investimentos estrangeiros, parece ser a aposta do governo cubano para preservar o padrão de Educação, Saúde e Cultura construído pela revolução. “Nossa economia precisa criar as condições para pagar as contas das conquistas sociais e abrir novos caminhos para a juventude”, ressalta Martinez. “A atração da poupança externa não pode ser o eixo de nosso modelo de desenvolvimento, mas um complemento.”
Diversificação
Mais que tudo, Cuba precisa criar empresas e empregos que tragam prosperidade a uma das populações mais bem educadas e preparadas do mundo. Nos últimos anos, além do Turismo, o país ampliou a produção de níquel (detém 34% das reservas mundiais), tabaco e fármacos. Aliás, a biotecnologia está se tornando um nicho no qual os cubanos adquirem cada vez mais força e prestígio, com exportações para mais de 30 países, apesar do bloqueio. Mas ainda é pouco para garantir sustentabilidade.
O desequilíbrio entre formação de mão-de-obra e ofertas internas de trabalho tem levado o país, por exemplo, a ter na exportação de serviços médicos uma de suas maiores rubricas comerciais. Apesar de ser um fator positivo para o balanço de pagamentos, esse cenário pode vir a afetar a qualidade interna do atendimento à população e estimular a atração de seus profissionais pelas esperanças migratórias.
Por essas e outras, as reformas lideradas pelo presidente Raúl Castro são encaradas como um esforço de guerra cuja meta é criar as condições para a ilha viver em um espaço econômico integrado, mas por conta própria e sem abdicar do sistema esculpido desde janeiro de 1959. “Nossa batalha, a batalha da geração que fez a revolução, é defender o socialismo cubano e levá-lo ao futuro”, afirma Ricardo Alarcón. “Para essa tarefa, precisamos entender qual o socialismo possível, capaz de trazer desenvolvimento e prosperidade para as novas gerações. Não temos medo de criticar nossos próprios erros, pois não há outra forma de construir um projeto histórico de nação.”
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