É inevitável ficar surpreendido em como a Coreia do Sul “foi de 0 a 100” em tão pouco tempo e hoje ostenta o status de uma das maiores economias do planeta, sendo reconhecida principalmente pelas suas indústrias de ponta (Samsung, Hyundai, LG…) e de entretenimento (K-pop e K-dramas).
Para se ter uma ideia, em 1953, o país enfrentava uma das piores crises humanitárias como consequência dos 35 anos da ocupação japonesa emendada com os três da Guerra da Coreia. Bastou meio século para o PIB per capita sul-coreano se tornar três vezes maior que o do Brasil.
Nos anos seguintes, a Coreia do Sul seguiu apoiada nos Estados Unidos e apostou em medidas econômicas que pudessem resultar em rápidos avanços para reverter sua condição precária. No entanto, os progressos acelerados surtiram efeitos colaterais a longo prazo, aprofundando uma desigualdade social que atinge quem vive no país.
Exemplos são as renomadas obras cinematográficas, como o filme Parasita (2019) e a série Round 6 (2021, 2024), que retratam um fragmento da realidade sul-coreana: pessoas com dificuldades financeiras, disputa pelo status, fome, entre outras questões.
Como a Coreia do Sul se recuperou?
Uma das principais razões pelas quais a Coreia do Sul pôde crescer tão ferozmente em sua economia foi a liderança política “astuta e tenaz” do ditador Park Chung Hee, que governou o país entre 1961 e 1979, de acordo com o professor Suh Doo Won, da escola de pós-graduação em Estudos Internacionais da Universidade da Coreia (Korea University, em inglês), com PhD em sociologia.
A Opera Mundi, o acadêmico explicou que o mandato de Park focou em uma estratégia voltada à exportação.
“O governo autoritário (de Park) manteve uma política de ‘baixa renda’ para ganhar competitividade internacional no mercado externo, especialmente nos Estados Unidos, por meio da venda de commodities feitas na Coreia do Sul. Consequentemente, os salários dos trabalhadores industriais sul-coreanos foram mantidos baixos e explorados economicamente. Qualquer tentativa coletiva exigindo maior renda e adesão às leis trabalhistas era imediatamente respondida por duras opressões políticas”, explicou Suh.
Por outro lado, os avanços econômicos do país também são atribuídos à adoção do modelo desenvolvimentista, uma tática que o Japão vinha aplicando muito antes. Esse modelo busca o crescimento econômico sob uma participação ativa do Estado, o que contrasta com as medidas de Industrialização por Substituição de Importações (ISI) adotadas por grande parte dos países latino-americanos na época, incluindo o Brasil.
Apesar dos surpreendentes resultados conquistados a partir da década de 60, o docente avaliou que o projeto sul-coreano para a recuperação econômica não foi saudável, sobretudo, para as gerações seguintes. Segundo Suh, “a política de industrialização intervencionada pelo Estado e liderada pela exportação sob um regime autoritário é, teoricamente, mais vulnerável à expansão da desigualdade em relação à estratégia ISI”.
“Porém, devido à particularidade de seu contexto histórico, como o efeito nivelador da devastadora Guerra da Coreia e a reforma agrária bem-sucedida sob Syngman Rhee (primeiro presidente da Coreia do Sul), a taxa de desigualdade sob o regime autoritário se manteve relativamente sólida — abaixo de 0,3 ponto no Coeficiente de Gini”, pontuou.
O Coeficiente de Gini é uma medida que consiste em um número entre 0 e 1, no qual 0 corresponde à completa igualdade, no quesito rendimento, enquanto 1 corresponde à completa desigualdade.
“Após a neoliberalização no período pós-crise financeira (1997), a desigualdade foi crescendo acima de 0,3 do indicador de Gini”, acrescentou.
Da mesma forma como Suh apontou para a existência de uma contexto histórico “particular” no país, o professor Cuz Potter, da Faculdade de Estudos Internacionais da Universidade da Coreia, explicou a Opera Mundi ser um “erro” pôr o modelo de desenvolvimento sul-coreano como uma possível inspiração para o exterior, uma vez que o “milagre” econômico “dependeu muito mais de circunstâncias geopolíticas afortunadas”.
“Como a Coreia do Sul estava na linha de frente da Guerra Fria após a Segunda Guerra Mundial e a Guerra da Coreia, os EUA tinham um forte interesse em ver sucesso no país asiático e investiram agressivamente para que isso acontecesse”, afirmou Cuz, destacando que a Coreia do Sul pôde, naquele período, desfrutar de um “acesso privilegiado ao mercado norte-americano”.
Entretanto, o docente também chamou a atenção para os efeitos colaterais que decorreram dos rápidos avanços econômicos e das ambições políticas de regimes autoritários.
“Historicamente, o governo sul-coreano favoreceu o capital em detrimento do trabalho. É importante lembrar que o rápido desenvolvimento econômico da Coreia do Sul começou sob a ditadura de Park Chung Hee, cujo regime reprimiu agressivamente os salários e violou os direitos humanos. O movimento de democratização da década de 1980 não foi apenas sobre democratização política, mas também sobre democratização econômica. E embora tenha havido progresso, acredito que, em geral, a Coreia do Sul segue favorecendo os donos do capital”, explicou.

Retrato dos apartamentos do luxuoso Tower Palace de Gangnam e, na frente, da Vila Guryong, conhecida por ser um bairro pobre; ambos os locais ficam no mesmo distrito de Gangnam, em Seul
O trabalho e os trabalhadores
Os últimos dados referentes ao mercado de trabalho sul-coreano não foram bons. De acordo com o último informe do Instituto do Trabalho da Coreia (KLI, por sua sigla em inglês), publicado em outubro passado, o mercado de trabalho viu o crescimento do emprego desacelerar no primeiro semestre de 2024. E assim tem sido a tendência desde o primeiro semestre de 2023, depois que o país desfrutou de um breve período eufórico decorrente da rápida recuperação pós-covid.
O levantamento do governo detalhou que o crescimento do emprego, que alcançou cerca de 370 mil no primeiro semestre de 2023, desacelerou para 280 mil em seu segundo semestre. Já no primeiro semestre de 2024, apresentou uma nova queda, diminuindo para 220 mil.
No caso das mulheres na faixa dos 30 anos, em específico, o boletim retratou uma tendência grave em 2024: a taxa de emprego caiu de 1,4% para 0,7% em apenas um ano.
O relatório concluiu que, de forma generalizada, um dos maiores fatores que impulsionou o aumento no número de desempregados foi “devido às condições locais como fechamento de empresas, demissões e falências, em vez de circunstâncias pessoais do empregado”.
E para os jovens, “devido a mudanças demográficas”.
Mudanças demográficas e baixa taxa de natalidade
Um dos principais problemas enfrentados pelo país é a baixa taxa de natalidade: a Coreia do Sul está no topo dessa lista na OCDE — abaixo de 0,7.
“Este ‘precipício populacional’ pressagia uma grave situação econômica. Uma insuficiência na capacidade de produção e consumo devido ao envelhecimento da população e uma minúscula geração de jovens”, afirmou Suh. “Após a Guerra da Coreia, os governantes autocráticos sustentaram a política de controle de natalidade até o início dos anos 1980 para evitar a superpopulação. A situação mudou radicalmente nas últimas duas décadas.”
Para tentar reverter essa situação, as últimas gestões sul-coreanas tentaram implementar uma série de políticas que sempre acabaram no fracasso. Em meados de 2024, por exemplo, o governo de Yoon Suk Yeol — presidente de extrema direita que cogitou abolir o Ministério da Mulher — propôs um polêmico projeto que buscava oferecer benefícios fiscais e licenças para incentivar a gestação. No entanto, não atendia às verdadeiras necessidades da mulher.
Em conversa com Opera Mundi, residentes sul-coreanas têm mencionado preocupações referentes ao alto custo de vida no país e da disputa acirrada no mercado de trabalho. Contudo, ressaltado à reportagem que, além desses fatores, existem problemas com “raízes mais profundas” que desmotivam a gravidez: a discriminação de gênero.
“O problema é ampliado pela discriminação de gênero. As mulheres têm menos probabilidade de serem promovidas, e é extremamente difícil saírem temporariamente do mercado de trabalho para cuidar dos filhos. Bom, é fácil sair, mas é virtualmente impossível retornar”, explicou Cuz. “Na Coreia do Sul, a educação infantil consome uma enorme proporção do orçamento das famílias jovens. Consequentemente, os jovens coreanos, como a maioria dos jovens atualmente, simplesmente não têm dinheiro para se casar e ter filhos”.
Já de acordo com o professor Suh, uma taxa de natalidade cada vez menor somada a um rápido envelhecimento populacional “não só desacelerará o crescimento econômico, mas também expandirá a desigualdade socioeconômica”.