Era 29 de julho de 1982 quando o banqueiro Umberto Ortolani deixou a Itália com destino ao Brasil, país que o tinha acolhido desde 1978, quando lhe foi concedida a cidadania brasileira. Mas essa era uma viagem diferente das outras realizadas até então. Com a polícia no seu calcanhar por causa do envolvimento na falência do Banco Ambrosiano, cujo presidente Roberto Calvi foi encontrado enforcado em Londres, em junho daquele ano, Ortolani resolveu escapar e usou aviões da Varig como meio de fuga. Os italianos mantinham estreita ligação com os executivos da companhia aérea.
Usando um passaporte suíço falso em nome de Malatesta, Ortolani foi para Genebra e de lá partiu para São Paulo a bordo de um jato privado da empresa Aeroleasing, que foi fretado pela Varig suíça. O passaporte falso foi, posteriormente, deixado sob a custódia da Varig de Genebra. A Aeroleasing pertencia ao empresário húngaro Peter Hotz que morava na Suíça e tinha uma mansão na cidade de Gland, um lugar seguro para Ortolani e seus comparsas.
A fuga do banqueiro só foi possível graças a um esquema ligando a extinta companhia aérea do Rio Grande do Sul com grupos que realizaram alguns atentados terroristas nos anos 80, e que eram ligados ao neofascismo europeu, especialmente da Itália, em uma conexão que passava até mesmo por uma loja maçônica.
Não era somente a falência do banco a tirar o sono do italiano. Um ano antes, em 17 de março de 1981, durante a investigação de um sequestro de outro banqueiro ligado ao Ambrosiano, as autoridades abriram a caixa de pandora e revelaram ao mundo a existência de uma lista que continha quase mil nomes de pessoas inscritas na loja maçônica clandestina Propaganda Dois (ou P2, como ficou conhecida).
Liderada pelo grão-mestre maçom Licio Gelli e por Ortolani, seu braço direito, a P2 serviu de base política e financeira para o terrorismo de extrema direita na Itália e apoio à ditaduras do Cone Sul nos anos 1980.
Os documentos sobre a P2 foram encontrados na Vila Wanda, casa em que Gelli vivia e mantinha um escritório na cidade de Arezzo, Itália. Nessa lista de 962 nomes constavam políticos, juízes, empresários, agentes de serviços secretos, jornalistas e militares, italianos e estrangeiros. Entre esses nomes estavam, por exemplo, os argentinos Emilio Massera, comandante da Marinha, e Guillermo Suárez Mason, comandante do Exército. Ambos ligados à ditadura militar argentina (1976-1983).
Na lista da P2 também estava o nome de três pessoas ligadas à Varig: o brasileiro Bruno Ottorino, o argentino Paolo Lavagetto e o italiano Bernardino Cifani.
Ottorino era diretor da companhia em São Paulo, Lavagetto atuava em Buenos Aires e Cifani em Roma.
O italiano era muito ligado ao Brasil. Em 1986 recebeu diploma de colaborador emérito do Exército brasileiro e, em 1989, o governo lhe concedeu o grau de comendador. Isso sem falar que havia em seu nome um passaporte diplomático concedido pela Embaixada do país em Roma.
Os nomes dessas três figuras também aparecem na Itália, em documentos da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a P2, que foi instituída em 2 de junho de 1981 e concluída após três anos de trabalhos.
Em 10 de abril de 1981, um mês após a descoberta dos documentos em sua casa, Gelli pegou seu passaporte diplomático italiano e embarcou no voo 910 da Varig para Montevidéu. Entre os dias 11 de abril e 6 de maio, entrou e saiu da capital uruguaia com destino a Buenos Aires e São Paulo. Em algumas das viagens, ele também usou o passaporte diplomático argentino.
Naqueles anos, Gelli tinha muita influência na junta militar do país vizinho, tanto que trabalhava como representante do país na embaixada da Argentina, em Roma.
Foi usando o passaporte argentino que Gelli deixou São Paulo, no dia 1 de maio, em voo da Air France com destino a Montevidéu. Um detalhe para se lembrar é que na noite anterior, em 30 de abril, um atentado a bomba estava acontecendo no Riocentro. A estratégia de tensão aplicada por militares brasileiros simpatizantes da linha dura que não queriam a abertura do governo era a mesma aplicada pela P2 na Itália: praticar atos terroristas e colocar a culpa nos movimentos de esquerda.
Gelli e o VClub da Varig
Em 20 de outubro de 1980, seis meses antes da bomba P2 estourar no país europeu, Hélio Smith, que havia assumido a Presidência da Varig em abril de 1980, mandou pessoalmente uma carta a Gelli na qual indicava tê-lo escolhido para fazer parte dos membros do VClub da Varig.
Smith ainda dizia que, anexo a carta, Gelli encontraria o cartão de associado que serviria para que fosse reconhecido como um membro do Clube especial da companhia aérea, pois era um passageiro que merecia atenção especial.
Dois meses depois, dia 5 de dezembro, foi a vez de Gelli escrever a Smith agradecendo a inscrição ao Clube e dizendo que o cartão de sócio lhe foi entregue em mãos pelo diretor do escritório da Varig na Itália. O venerável maçom aproveitou para manifestar seu apreço pela eficiência e perfeição do serviço prestado pela companhia. O Brasil vivia em plena ditadura militar.
Segundo uma fonte ligada à companhia, o VClub foi um programa criado durante os anos 1980 e era dirigido aos grandes empresários (presidentes/diretores) que se “enquadravam” como “Frequent Flyers (Passageiros Frequentes)”, e a escolha dessas personalidades era feita pelos diretores e superintendentes da Varig em suas bases no Brasil e exterior.
Mas há uma discrepância na formulação do regulamento sobre quem deveria ou não ser admitido no clube vip: “O ‘VClub’, em hipótese alguma, admitia e/ou incluía pessoas ligadas a classe político/partidária ou militares”, disse a fonte à reportagem de Opera Mundi.
Não se sabe quem foi a pessoa que entregou o cartão de sócio a Gelli. O que se tem conhecimento e consta em documentos oficiais é que entre 1979 e 1980, além de Bernardino Cifani – que fazia parte da P2 –, Romano Coltellacci, um outro italiano ligado a movimentos de extremistas de direita, também trabalhava na sede romana da Varig.
Coltellacci, rosto conhecido da militância do Ordine Nuovo, era representante da companhia brasileira. Ordine Nuovo foi uma organização extraparlamentar de extrema direita que atuou na Itália.
Nos anos de “piombo italiano” – período de instabilidade marcado pela violência política –, o Ordine Nuovo e o Avanguardia Nazionale, os dois principais movimentos da direita fascista italiana, perpetraram atos terroristas, contribuindo para o caos no país.
Ao que tudo indica, a Varig romana tornou-se, aparentemente, um ponto de convergência e facilitação para os terroristas de direita que buscavam escapar da Itália. O destino de muitos deles era a América do Sul, e o Brasil foi o preferido de alguns.
O historiador Alexandre Fortes, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, destaca que a Varig se envolveu com a extrema direita desde suas origens. Seu fundador, Otto Ernst Meyer, veterano da Primeira Guerra Mundial, vinculou-se ao nazismo e foi detido em 1940 por participar da instalação de rádios transmissores em um navio alemão no porto de Rio Grande. Antes de passar por uma intervenção do governo brasileiro em 1942, a empresa tinha papel fundamental na logística de distribuição de propaganda e correspondência do partido nazista no Rio Grande do Sul.
Fortes destaca que durante o período da ditadura militar no Brasil (1964-1985), todas as companhias aéreas estavam subordinadas ao Departamento de Aviação Civil (DAC). ”E o envolvimento militar na operação das empresas era grande”, explicou o professor da UFRRJ. O DAC à época funcionava como a Autoridade Aeronáutica brasileira.
“No caso da Varig, não havia militares na direção da empresa, mas aparentemente a direita militar ‘adotou’ a empresa, junto com a Cruzeiro, como se verificou após 1964, quando Eduardo Gomes transferiu para essas empresas as linhas da Panair”, observou o historiador. Além disso, Fortes destaca que a Varig “sempre jogou em várias faixas do espectro político. [Alberto] Pasqualini fez o estatuto da fundação dos funcionários e [Leonel] Brizola salvou a empresa nos anos 1950, quando era secretário da Fazenda do Rio Grande do Sul”.
Atentado de Bolonha
Era 1979, um homem com documentos brasileiros em nome de Roberto da Silva deixava a Itália num voo da Varig em direção ao Brasil. Era, em teoria, seu segundo voo para o país. O primeiro aconteceu em 1976, quando da Silva ainda se chamava Paolo Bellini e era procurado pela polícia italiana por ter atirado em um militante de esquerda.
Bellini foi para o Rio de Janeiro, cidade onde outro italiano, Bruno Orsi, que também era ligado à extrema direita italiana, o estava esperando.
No Rio, Bellini encontrou a ajuda que precisava para se tornar um verdadeiro cidadão brasileiro. Obteve tudo: registro de nascimento, CPF, alistamento militar e passaporte. De volta à Itália com a nova identidade, viveu por alguns anos com certa tranquilidade, até ser preso em 1981 por roubo de móveis antigos.
Para as autoridades, em um primeiro momento, a pessoa presa era Roberto da Silva. A polícia italiana não tinha a menor ideia de que aquele homem fosse, de fato, Bellini. Sua verdadeira identidade só foi descoberta em 1982. À época, até o Serviço Nacional de Informações (SNI) brasileiro foi acionado para averiguar a veracidade dos documentos.
Recentemente, Bellini voltou ao centro da atenção midiática porque foi condenado em 6 de abril de 2023, em primeira instância, à prisão perpétua, por envolvimento em um dos piores atentados terroristas que marcou a história da Itália: em 2 de agosto de 1980, uma bomba explodiu na estação de trem de Bolonha, causando a morte de 85 pessoas e deixando cerca de 200 feridos. Segundo a sentença, Bellini é um dos executores materiais do atentado.
A Corte de Assis de Bolonha concluiu que o atentado, conhecido como o “Massacre de Bolonha”, não foi causado por grupos neofascistas que agiam espontaneamente, mas fazia parte de uma estratégia mais ampla de tensão política. O Tribunal corroborou os vínculos entre os terroristas e os centros estratégicos, destacando o papel de uma espécie de serviço secreto oculto e da loja maçônica P2.
Foram identificados mandantes do atentado, incluindo nomes como Gelli e Ortolani, além de Federico Umberto D’Amato e Mario Tedeschi, embora todos já estivessem falecidos no momento do julgamento. O Tribunal considerou crucial o “documento Bolonha”, atribuído a Gelli, que contém indicações e cifras de supostos pagamentos para planejar o atentado.
No final de janeiro deste ano, a Corte de Apelação de Bolonha deu início ao processo em segunda instância. Mas o caso só terá um desfecho definitivo quando chegar à Corte de Cassação, a última instância da Justiça italiana.