Três semanas após a vitória do empresário Sebastián Piñera, que garantiu a volta da direita ao poder no Chile pela primeira vez desde o fim da ditadura (1973-1990), a coalizão de centro-esquerda Concertação ainda não começou uma autocrítica. Esta é a avaliação do economista Roberto Pizarro, que transitou pelos governos da aliança no poder. Foi ministro do Planejamento e embaixador chileno no Equador durante o mandato de Eduardo Frei Ruiz-Tagle (1994-2000). Nos últimos anos, trabalhou na cancelaria chilena, no departamento de negociações econômicas internacionais. Com a vitória de Piñera, renunciou e acaba de ser nomeado reitor da universidade Academia de Humanismo Cristão, que foi um foco de resistência ao regime de Augusto Pinochet.
Durante o governo de Salvador Allende (1970-1973) Tito Pizarro, como é chamado pelos amigos, foi diretor do Centro de Estudos Socioeconômicos (CESO), onde também trabalhavam Marco Aurélio Garcia, Emir Sader, Theotonio dos Santos, André Gunther Frank, e Rui Mauro Marini. Durante a ditadura, Pizarro se exilou em Buenos Aires, onde foi detido pela Operação Condor de novembro de 1975 até setembro de 1976. Após a libertação, foi para Inglaterra, onde fez pós-graduação na Universidade de Sussex, antes de se instalar na Nicarágua de 1981 a 1990. Na entrevista concedida ao Opera Mundi, ele aponta os erros políticos e econômicos da Concertação que, segundo ele, terá muita dificuldade para sobreviver após a derrota. O economista considera que a coalizão não cumpriu suas principais tarefas, confundindo dogmas neoliberais com políticas sociais.
Apesar da enorme popularidade da presidente Michelle Bachelet, o candidato de centro-esquerda Eduardo Frei não conseguiu se eleger, o que foi interpretado como uma rejeição da coalizão que governou o Chile nos últimos 20 anos. Porque a maioria do país não queria mais a Concertação?
Acho que a razão principal é que os cidadãos não percebiam grandes diferenças entre Frei e Piñera. De fato, a Concertação não cumpriu sua promessa de mudar as instituições criadas pelo regime de Augusto Pinochet, e isso foi sua grande derrota política. Faltou vontade, e eu me atreveria a dizer que muitos de seus líderes se deram muito bem com este contexto institucional. A consequência é que, durante os últimos 20 anos, a essência do sistema político ficou a mesma, dependendo da constituição de 1980, elaborada por Pinochet.
O texto constitucional estabelece o regime eleitoral binominal, que restringe a participação dos cidadãos que não se identifiquem com a Concertação ou com a direita. Além disso, a constituição consagra o regime econômico neoliberal, limitando as intervenções do Estado na atividade econômica. Para a maioria dos chilenos, a eleição não era uma confrontação de programas, mas uma escolha entre duas pessoas. Frei parecia como o antigo presidente, que já teve sua oportunidade para governar e que não tinha mais nada a oferecer. Piñera foi percebido como uma nova figura que, talvez, conseguisse consertar os aspectos ruins da Concertação.
Um dos argumentos de campanha de Piñera foi que, numa democracia, é sempre bom alternar. O senhor acha que houve um cansaço no eleitorado em relação à Concertação?
Sim, sem dúvida nenhuma. Durante os últimos 20 anos, os eleitores foram acompanhados pelas mesmas caras no parlamento, no governo e nos partidos políticos, até não aguentar mais. Os velhos dirigentes, em vez de promover a participação dos jovens à vida política, fechavam as portas. Por outro lado, o regime eleitoral binominal, que não permite uma representação proporcional, impediu a emergência de novas forças políticas. Para resumir, os políticos de sempre defendiam suas posições de poder como se fossem uma trincheira e, ao mesmo tempo, aumentava o número de cidadãos que não votavam, num clima generalizado de indiferença à política. De fato, atualmente, 50% das pessoas com direito a votar não se inscrevem no registro eleitoral, ou votam nulo ou em branco, ou simplesmente, não comparecem para votar.
Quais são os maiores méritos dos quatro mandatos da Concertação?
Os governos da Concertação tiveram um excelente desempenho econômico de um ponto de vista neoliberal. A economia cresceu vigorosamente – na média, 5% por ano desde 1990 – e a pobreza passou de 40% da população para 13% hoje. Paralelamente, a inserção econômica do Chile no mundo foi notável. É o resultado da persistência da abertura unilateral (diminuição das taxas de importação e tratamento igualitário entre capital nacional e estrangeiro) e da assinatura de tratados de livre-comércio (20 acordos com 60 países). Além disso, melhoraram bastante as infraestruturas, estradas e portos.
Em relação às liberdades públicas, abriram-se muitos espaços para os setores discriminados. O melhor exemplo é a aprovação legal do divórcio, assim como mais direitos para as mulheres. Finalmente, é preciso reconhecer que o governo de Michelle Bachelet aproveitou os preços altos do cobre para implantar um programa que paga aposentadorias aos 60% mais pobres da população, mesmo que nunca tenham contribuído antes. O governo chama isso de política social, o que eu acho errado: na verdade, é uma política que não sai da concepção neoliberal de assistencialismo para os mais pobres.
Do outro lado, quais foram os principais erros da Concertação nesses quatro mandatos?
A Concertação cometeu vários erros políticos. Primeiro, ela não fez esforço para mudar a constituição que Pinochet fez em 1980. A “nova constituição” de Lagos provocou a maior confusão, já que não tocou em nenhum dos elementos principais do texto da ditadura – ou seja, o regime eleitoral binominal e a consagração do neoliberalismo econômico. Outro erro político foi a falta de interesse, ou até o desprezo dos partidos da Concertação e de seus governos pelas organizações sociais: estudantes, trabalhadores, consumidores, meio-ambientalistas e indígenas. O exemplo mais expressivo foi a grande mobilização de estudantes para acabar com o lucro na área da educação e exigir um ensino de melhor qualidade. Um milhão de estudantes saiu às ruas no início do governo de Bachelet, em 2006, paralisando toda a classe política chilena e abrindo caminho para uma reforma profunda da educação. O governo, porém, não aproveitou a força deste movimento, e optou por uma reforma que consolidou o setor privado e as mesmas instituições no sistema educacional. Além disso, colocou como ministra da Educação uma fundamentalista religiosa, grande defensora da educação privada.
Mas, como o senhor mesmo falou, o Chile conheceu um relativo sucesso do ponto de vista da gestão econômica, não?
Mas a crítica é a mesma. Do ponto de vista econômico, o principal erro foi privilegiar o mercado contra qualquer outra consideração. O objetivo era ordem fiscal, superávit estrutural, inflação baixa e câmbio desregulado. Essa concepção fez o país perseverar na produção e exportação de recursos naturais, acabando com alternativas de transformação produtiva. Desse jeito, o Chile não terá possibilidade de sair do subdesenvolvimento e consumirá seus recursos ambientais, sacrificando as futuras gerações. Por exemplo, a Intel, produtora de microchips, conversou com o governo do então presidente Eduardo Frei para se instalar no Chile. A resposta foi que a decisão de instalação de uma empresa dependia somente do mercado e que o Estado não podia fazer nada. Resultado: a Intel foi para a Costa Rica, trazendo grandes benefícios em termos de crescimento, exportações, transformação produtiva e emprego. Ou seja, com o neoliberalismo sem limites, não existe a orientação pública nem estratégia de desenvolvimento. As forças espontâneas do mercado são as únicas que decidem do destino econômico do país.
A sua percepção é compartilhada pelos dirigentes da Concertação?
De jeito nenhum. Os líderes da Concertação, e especialmente Ricardo Lagos (que governou o país entre 2000 e 2006), estão convencidos que fizeram um trabalho ótimo durante os últimos 20 anos. Eu acho, porém que os governos da Concertação não foram capazes e se diferenciar da direita econômica neoliberal e aceitaram sem problema as instituições políticas herdadas da época de Pinochet. Eles não favoreceram a sindicalização nas empresas e renunciaram à negociação coletiva; apoiaram o grande capital contra os pequenos empresários; optaram por grandes projetos em vez de defender o meio ambiente; abandonaram o projeto de participação popular e de descentralização política; favoreceram o crédito com taxas abusivas em vez de proteger os consumidores; apoiaram o setor privado na educação, na saúde e na previdência; privilegiaram de forma absoluta o crescimento sem se preocuparem com a distribuição da renda. E, no terreno político, como já falei, os dirigentes preferiram a comodidade de uma constituição que dava a garantia do bipartidarismo em vez de assumir o risco de mudar o regime político para abri-lo a novas forças e à juventude.
A derrota na eleição presidencial que permitiu a volta da direita ao poder provocou uma autocrítica dentro da Concertação?
Não existe autocrítica ou ela é muito limitada. Por exemplo, na noite de 17 de janeiro, após a derrota, depois do discurso de Frei, Lagos pegou o microfone e falou sobre as “mudanças gigantescas” que foram realizadas no Chile durante os últimos 20 anos. Ao mesmo tempo, como se ele fosse o guru das novas gerações, acenou a disposição para mostrar o caminho a eles. Isso revela soberba, desconhecimento da realidade chilena e falta de espírito critico.
Se realmente houvesse estas “mudanças gigantescas”, acho que a população não teria optado por um homem rico de direita. O problema é que, para alguns dirigentes da Concertação, inclusive Lagos, “mudanças gigantescas” se referem a crescimento, inflação baixa, tratados de livre-comércio, crédito ao consumo e construção de estradas. No entanto, para o povo e os que se reconhecem como de esquerda, “mudanças gigantescas” são modificações na relação de poder entre o capital e o trabalho, educação e saúde de qualidade para todos, um sistema integral de proteção social, um Estado capaz de regular os bancos e o sistema de crédito para frear a usura, descentralização regional e participação cidadã.
Leia a segunda parte:
Concertação deverá renovar projeto político para não morrer
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