Os protestos em Seul contra o presidente afastado da Coreia do Sul, Yoon Suk Yeol, do Partido do Poder Popular (PPP) de extrema direita, que tentou promover um autogolpe no país, chamaram a atenção do mundo por uma característica em particular. Diferente de outros países, as manifestações sul-coreanas se tornaram “festivais de k-pop”, termo que foi usado propriamente por parlamentares da oposição na Assembleia Nacional. Os deputados reconheceram a influência dos fãs do gênero musical na aprovação do pedido de impeachment, em 14 de dezembro.
Diversas imagens de jovens, entre 20 e 30 anos, dançando e cantando músicas de k-pop circularam nas redes sociais durante vários dias. Faixas icônicas como Into The New World, de um dos grupos mais tradicionais da indústria do entretenimento no país, Girls’ Generation, foram reproduzidas para expressar, como diz em sua letra, que “juntos não desistamos” e “deixemos a tristeza para trás”.
“Hoje todos nós estamos unidos lutando para defender a democracia, que foi alcançada com o esforço de inúmeras pessoas ao longo do tempo. Mas a gente ainda vê resquícios da ditadura. A nossa política é caótica. E nesse contexto, aconteceu algo inacreditável: o decreto da lei marcial”, disse Kim, de 39 anos, que se assume fã do grupo de k-pop Tempest.
A Opera Mundi, Kim contou que, na noite de 3 de dezembro, foi pega de surpresa com “a notícia absurda” de que Yoon havia decretado a lei marcial.
“Vi que muitos fãs de k-pop estavam se reunindo nos protestos, levando os light sticks (bastões de luz que os fãs de k-pop costumam usar em shows para apoiar seus artistas) que representavam seus respectivos ídolos. Isso me encorajou a querer fazer parte desse momento”, afirmou.
De acordo com a “iE” — como são chamados os membros do fã-clube de Tempest —, na Coreia do Sul em particular, o movimento dos fãs de k-pop em torno de um propósito em comum configura uma ferramenta política “muito poderosa”.
“Penso que os efeitos (da mobilização de fãs) foram claramente notados nesses protestos. Embora ninguém se conhecesse, de uma forma natural, sentimos a força da solidariedade. Foi graças à sensação de pertencimento que pude permanecer nos protestos sem ficar cansada, mesmo com o frio. Até os fãs mais jovens puderam participar do comício como se fosse um festival. Cantávamos juntos nossas músicas favoritas”, relatou a garota. “Nem a idade e nem o gênero importam”.
Artistas desafiaram a censura
Embora seja uma questão delicada celebridades da indústria do entretenimento sul-coreano expressarem seus posicionamentos políticos em função das cláusulas de contrato das agências com as quais estão filiadas, o apoio pelo impeachment de Yoon não foi deixado para trás.
Desde a decretação da lei marcial em 3 de dezembro, o cantor Lee Seung Hwan passou a se manifestar publicamente contra o presidente afastado e chegou a realizar uma apresentação musical em um comício a favor do impeachment em frente à Assembleia Nacional, em 13 de dezembro. No entanto, suas atividades profissionais acabaram sendo prejudicadas em função de seus posicionamentos.
Um dos episódios mais recentes aconteceu na última semana do mês, na cidade de Gumi, província de Gyeongbuk. A Prefeitura local anunciou o cancelamento do show de Seung Hwan ”devido a questões de segurança”.
Em resposta, o Grupo de Preparação de Declaração dos Músicos, que representa 2.645 profissionais da área, entre cantores, intérpretes, produtores e críticos, emitiu um comunicado em 23 de dezembro repudiando a “decisão unilateral” ao afirmar que “as atividades culturais e artísticas são direitos básicos dos cidadãos garantidos pela Constituição”.
“A própria cidade de Gumi admitiu que a Prefeitura cedeu aos protestos de um grupo específico ao cancelar o show devido a objeções às quais os organizadores puderam responder de forma adequada”, argumentou a entidade. “Ao restringir as atividades artísticas devido às opiniões pessoais dos artistas, foi criado um precedente perigoso de censura e controle sobre a arte e a cultura”.
Em redes sociais, Seung Hwan lamentou a situação “miserável” e associou o caso aos riscos da “liberdade de expressão”.
A Opera Mundi, Lee, de 34 anos, que também participou dos “festivais de k-pop” nas ruas de Seul, classificou como “corajosas” as celebridades que se posicionaram explicitamente sobre o cenário político.
“Como a Coreia (do Sul) é um país pequeno e onde a cultura popular desempenha um papel importante, penso que, muitas vezes, cada movimento dado pelas celebridades acaba se tornando um problema. Isso impacta na reputação deles”, explicou. “Os artistas daqui que apoiam ativamente a condenação do atual governo são corajosos. Além disso, como falei anteriormente, vivemos em um país onde a cultura popular desempenha um papel importante. Nesse sentido, penso que a ação das celebridades definitivamente contribuiu para que o público se interessasse e participasse mais dos protestos”.
De acordo com Kim, fã de Tempest, os grupos de k-pop correm o risco de terem a sua carreira profissional suspensa em função de manifestações políticas.
“No ponto de vista de um cantor, seria bem complicado fazer críticas explícitas ao governo, principalmente considerando os riscos de que sua carreira seja suspensa. Não teria outra escolha senão evitar em se posicionar”, disse.
Mesmo correndo esse risco, a ex-integrante do grupo IZ*ONE, Lee Chae Yeon, foi uma das únicas na cena do k-pop que se manifestou abertamente sobre a situação política no país. Em 7 de dezembro, quando a primeira tentativa de votação para o impeachment de Yoon foi boicotada pelo partido governista, a artista usou suas redes sociais para criticar a posição na qual as celebridades sul-coreanas se encontram sobre ter que evitar o assunto.
“Não cabe a mim falar sobre política? Então qual seria o momento ideal para eu poder falar sobre política?”, questionou Chae Yeon, durante uma transmissão ao vivo. “Como cidadã e celebridade, eu mesma cuidarei daquilo que eu falo”.
Além disso, a artista publicou uma foto nas redes sociais segurando um light stick em meio aos protestos.
Já outros famosos apostaram em mensagens mais cautelosas. Sem mencionar Yoon, nem mesmo falar abertamente sobre a lei marcial, artistas como Youngjae do grupo GOT7 e Dayoung de WJSN agradeceram seus fãs por participarem dos protestos e desejaram que “a Coreia do Sul se torne um lugar melhor para se viver”.
Uma forma inusitada de protesto também chamou a atenção da imprensa nacional. Algumas celebridades passaram a comprar uma quantidade imensa de alimentos e comidas, além de bolsas térmicas, para doar aos manifestantes que ficariam por horas nos protestos. Bastava passar em um determinado estabelecimento ou cafeteria indicado pelo artista e retirar o pedido pré-pago.
A cantora solista e atriz IU chegou a distribuir centenas de pães, xícaras de café, tigelas de sopa gomtang (consumida com frequência no inverno) e tteok (bolinhos de arroz).
“Neste tempo frio, preparamos comida e bolsas térmicas na esperança de esquentar, ao menos um pouco, as mãos congeladas dos fãs da IU, que participam do comício segurando os light sticks da cantora e iluminam o ambiente”, comunicou a agência da IU.
A integrante Yuri, do Girls’ Generation (que cantou Into The New World), anunciou uma doação massiva de kimbap (enrolado que leva arroz, alga e legumes).
“Que todo mundo coma kimbap, encha o estômago e cante bem Into The New World”, disse a cantora.
“Os artistas expressaram suas posições e doaram muito para aqueles que participaram dos protestos, mesmo correndo os riscos”, disse a fã de Tempest. “Os protestos foram realizados em dias extremamente gelados e, em determinado momento, começávamos a sentir fome. Esse tipo de apoio (doações) ajudou muito. Foi graças a ele que consegui me sustentar por mais tempo nas manifestações. Foi muito gratificante”.