O texto define maneiras de proibir e condenar práticas de mudança da orientação sexual ou da identidade de gênero e será examinado por uma comissão da Assembleia Nacional francesa, a partir desta quarta-feira (29/09). Em seguida, o projeto, de autoria da deputada Laurence Vanceunebrock, do partido do governo A República em Marcha, deve ser debatido no plenário a partir da próxima segunda-feira (04/09).
A proposta qualifica a cura gay de “tortura” e visa criar um delito específico, que prevê uma pena de pelo menos dois anos de prisão e € 30 mil de multa (cerca de R$ 200 mil). Esse montante pode subir para € 45 mil se a vítima for menor de idade. O texto também deverá facilitar as queixas nas delegacias de polícia e ajudará a estimar o número de vítimas.
As terapias acontecem em consultórios de Psicologia ou são realizadas por sacerdotes de diferentes religiões, incluindo a Católica, o Islã e o Judaísmo. “Esta também será a ocasião de continuar o trabalho de sensibilização sobre o assunto”, declarou o líder do partido A República em Marcha, Christophe Castaner. “Não quero que as pessoas pensem que essas terapias são autorizadas. Elas são proibidas, mas acontecem de formas diferentes, e a criação de um delito específico permitirá condená-las de maneira mais eficiente”, defendeu.
A ministra francesa responsável pela Igualdade entre Homens e Mulheres, Elisabeth Moreno, elogiou o projeto de lei, que, segundo ela, colocará um fim às práticas “da Idade Média”, e será um passo a mais em direção a uma sociedade mais inclusiva, “onde todos e todas podem ser respeitados independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero”.
Consultórios
“Nós esperávamos que o projeto entrasse na pauta de discussões da Assembleia Nacional”, disse à RFI Brasil Lucile Jomat, presidente da Associação francesa S.O.S Homofobia. De acordo com ela, o arsenal legislativo existente não engloba tudo o que pode acontecer durante a “cura gay. ”
A associação, diz, recebe ligações de vítimas da “terapia”, que ocorre principalmente em consultórios de psicoterapia “especializados” na prática. “Se alguém não se sente bem com sua opção, pode cruzar alguém que irá convencê-la a mudar de orientação sexual”, diz Jomat.
“Na maior parte do tempo, são pessoas que têm dificuldade para se aceitar e vão, por conta própria, buscar ajuda para mudar”, explica. “Se o terapeuta for totalmente contrário ao fato que alguém possa ser homossexual, vai tentar, de todas as maneiras possíveis, convencer o paciente a rever sua orientação sexual, o que obviamente não é possível. Isso aumenta o mal-estar das pessoas em relação a elas mesmas”, reitera.
Wikicommons
´Projeto é de autoria da deputada Laurence Vanceunebrock, do partido governista A República em Marcha
Segundo a representante da associação francesa, não há dados sobre o número de vítimas e terapeutas e religiosos envolvidos, o que a lei, justamente, ajudará a estabelecer. “Detalhando o que pode e deve ser condenado, poderemos ter estatísticas à disposição sobre o alcance dessas práticas e o número de vítimas”, reitera.
Amarrado na cama
Nas audições ocorridas na Assembleia Nacional, a autora do projeto de lei, Laurence Vanceunebrock, conta que um jovem foi submetido a eletrochoques em uma clínica particular, no sul da França, e também a injeções de hormônios.
Há outros relatos de “cura gay” no país feitos por padres ou sacerdotes de várias religiões. Em entrevista à rádio francesa France Info, um jovem contou que um grupo de uma comunidade religiosa tentou “curá-lo” em sessões de exorcismo. “Na cerimônia, um padre pediu que o “demônio da homossexualidade saísse do meu corpo”, diz a vítima.
“A violência foi extrema, mas eu acreditei que estivesse me convertendo e que isso era para meu próprio bem”, conta. No total, convencido de que seria “curado”, o jovem participou de oito sessões de exorcismo.
Em uma delas, ele chegou a ser amarrado em uma cama. Ao se dar conta da situação à qual havia sido submetido, o jovem ficou sem saber a quem recorrer, já que não existia uma lei específica no país que considerasse esse tipo de ritual como um delito. “Espero que esse não será o caso para as próximas gerações. ” Sua história foi contada no documentário Interview/Homotéraphies.
O porta-voz do coletivo “Rien à Guérir”, (Nada para curar, em tradução livre), Benoît Berthe, milita pelo fim da “cura gay” na França. Ele mesmo foi vítima desse tipo de terapia entre 15 e 18 anos. O jovem foi enviado pelos seus pais, católicos, nas férias e finais de semana, para uma comunidade religiosa.
“Eles manipulavam textos da Bíblia para justificar seus métodos e destruir completamente a vida das pessoas”, contou ao site francês Brut, dizendo que era obrigado a passar horas em silêncio ou a responder questões humilhantes sobre sua sexualidade.
As terapias, diz, induzem a uma homofobia extremamente forte. Nos Estados Unidos, mais de 700 mil pessoas teriam sido submetidas a esse tipo de prática, de acordo com um estudo publicado em 2019.