Horas depois de superar uma tentativa fracassada de golpe militar, a Bolívia ainda vive os resquícios do que foi uma das jornadas políticas mais tensas de sua história.
A intentona comandada pelo ex-general Juan José Zúñiga foi desarticulada. Porém, minutos após sua prisão, o líder daquela ação militar deu uma entrevista acusando o presidente Luis Arce de ser o responsável pelos acontecimentos.
“O presidente conversou comigo no domingo e pediu para que eu produzisse um fato que ajudasse a aumentar sua popularidade”, alegou o ex-general.
Essa versão se contradiz com o fato de que, durante a ocupação da Praça Murillo, o próprio Zúñiga pediu a renúncia de todos os ministros, e falou que a ação que ele liderava tinha como objetivo “recuperar a Pátria”.
“Basta de empobrecer a nossa Pátria, basta de humilhar os militares. Viemos aqui para expressar a nossa moléstia”, afirmou o então comandante, durante a tentativa de golpe.
Deputado pró-Evo defende tese de autogolpe
A tentativa de golpe ocorre em um momento em que o partido governista Movimento ao Socialismo (MAS) enfrenta sua maior crise interna, com um enfrentamento entre o setor liderado pelo presidente Arce e o encabeçado pelo ex-presidente Evo Morales.
Durante a tentativa de golpe, ambos os grupos voltaram a se unir, e o ex-mandatário foi o primeiro em convocar seus seguidores às ruas para defender o governo.
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Porém, com a ação militar já desarticulada, partiu justamente do setor evista do MAS o primeiro apoio à narrativa do ex-general Zúñiga dentro da esquerda boliviana.
Trata-se do deputado Anyelo Céspedes Miranda, militante do MAS, que apresentou nesta quinta-feira (27/06) suas suspeitas com relação a alguns detalhes que disse ter observado durante a tentativa de golpe.
Segundo Céspedes, uma das curiosidades da jornada foi o fato de que “todos os dias, há sempre uma tropa de entre 20 a 30 soldados na frente do Palácio Presidencial, e quando as forças lideradas pelo general Zúñiga tomaram a Praça Murillo nesta quarta, não havia nenhum”.
“Também há uma Unidade da Polícia Antimotim, que fica a meio quarteirão da praça e que possui um efetivo de mais de mil homens. Também não havia nenhum atuando naquele momento”, contou o deputado.
Outro ponto levantado pelo parlamentar aliado a Evo é que “quando se planeja um golpe de Estado, nunca se planeja a sua execução às duas da tarde, com coletiva de imprensa e tudo. Isso parece um roteiro trazido de outros países”.
“Sabe por que é preciso acreditar no General Zúñiga? Porque ele foi nomeado por Luis Arce. São amigos, jogavam basquete juntos na escola. Não se trata de uma pessoa distante”, completou Céspedes.
Ex-vice de Evo descarta autogolpe
A versão do possível autogolpe não foi corroborada pelo sociólogo Álvaro García Linera, que foi vice-presidente da Bolívia durante todo o governo de Evo Morales, entre 2006 e 2019.
Em entrevista à rádio argentina AM 750, o acadêmico disse que as declarações do ex-general Zúñiga, aludindo a um possível envolvimento de Arce na tentativa de golpe, “devem ser tratadas como as palavras de um homem diante de um fracasso, e que estava sendo preso por isso, então não tinha nada a perder, podia inventar qualquer desculpa”.
Entretanto, García Linera fez um alerta sobre o clima de divisão no MAS. O ex-vice-presidente acusou a direita de estar por trás da tentativa de golpe para aproveitar justamente a crise interna no partido governista, afirmando que esse setor pode tentar novamente uma ação desse tipo, caso as rusgas entre evistas e arcistas persistam.
“Essas são as fraturas internas que nos mostram fracos, nos fazer esquecer que temos inimigos maiores. Desta vez, esses inimigos colocaram a cabeça para fora”, frisou o sociólogo, na entrevista à rádio argentina.
Governo: versão de autogolpe é ‘inconcebível e temerária’
Por sua parte, o governo da Bolívia se pronunciou sobre a versão do ex-general Zúñiga, afirmando que são “falsas, inconcebíveis e temerárias” as declarações que tentam envolver o presidente Luis Arce na planificação da intentona.
O ministro de Governo (pasta similar à Casa Civil no Brasil), Eduardo del Castillo, afirmou que “alguns personagens que agora se encontram presos estão tentando obter benefícios pessoais a partir da distorção dos acontecimentos do dia 26 de junho na Praça Murillo”.
Del Castillo acrescentou que, além de Zúñiga, há mais de dez militares presos por seu envolvimento com a intentona desta quarta-feira, e que, através dos depoimentos desses outros detidos, “se sabe que essa ação vinha sendo planejada há cerca de três semanas”.