Nesta quinta-feira (26/09), o presidente rotativo do Conselho Presidencial de Transição do Haiti, Edgard Leblanc Fils, afirmou para a Assembleia Geral da ONU sua intenção de que a atual Missão Multinacional de Apoio à Segurança (MSS), que está no país desde junho, seja ampliada e transformada em uma Missão de Manutenção da Paz da ONU.
“Queremos que comece uma reflexão sobre a transformação da missão de apoio à segurança, em uma missão de manutenção da paz sob o mandato das Nações Unidas”, declarou Leblanc.
“A falta de processos e reparações para as vítimas reforçou um certo senso de impunidade”, disse ele, referindo-se às graves alegações de violações de direitos humanos ocorridas em missões de paz anteriores no Haiti.
Leblanc aproveitou a situação para afirmar que há uma “oportunidade de restaurar a imagem das missões internacionais no Haiti e construir um futuro melhor para o povo haitiano”.
Falta policial
A declaração ocorre num cenário complexo em que nenhum dos objetivos delineados há um ano pelo Conselho de Segurança da ONU foi cumprido, ao mesmo tempo em que a missão nunca foi completamente instalada.
A atual Missão Multinacional de Apoio à Segurança (MSS) foi aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU em outubro de 2023, autorizando sua implantação por um período de 12 meses e que expira no próximo 1º de outubro.
Diante desse cenário, no início de setembro, os Estados Unidos e o Equador apresentaram um projeto para transformar a MSS numa Missão de Manutenção da Paz da ONU e prorrogar sua presença no Haiti por mais 12 meses.
Inicialmente, esperava-se que o destacamento policial da missão fosse composto por mais de 3.100 efetivos. O contingente seria liderado pela polêmica polícia queniana, que vem sendo apontada por órgãos internacionais por suas sistemáticas violações de direitos humanos. Completariam o contingente forças da Jamaica, Benin, Chade, Bahamas, Bangladesh, Barbados e Belize.
No entanto, até o momento, a poucos dias de terminar o prazo estabelecido pelo conselho de segurança, o MSS não foi completado. Atualmente, conta com apenas 400 policiais quenianos, além de outros 20 da Jamaica e de Belize.
Na quinta-feira, o presidente de Quênia, William Ruto, declarou diante da Assembleia Geral da ONU que seu país “mobilizará as tropas restantes para chegar a 2.500 policiais até janeiro do próximo ano”, atribuindo o atraso à falta de financiamento.
“Quênia, assim como outros países do Caribe e da África, estão prontos para enviar, mas estamos enfrentando dificuldades devido à falta de equipamentos, logística e fundos”, afirmou. Enquanto, exortou “todos os Estados membros a demonstrarem sua solidariedade com o povo haitiano, fornecendo o apoio necessário”.
No último sábado, antes de sua chegada a Nova York, William Ruto fez uma breve escala em Porto Príncipe, capital do Haiti. Naquela passagem, afirmou para a imprensa local que, embora tenham existido restrições logísticas e falta de recursos para a missão, cerca de 20 países já haviam comprometido recursos. Também afirmou que, até onde podia ver, a missão tinha obtido “ progressos na luta contra as gangues armadas”.
Demoras e controvérsias na implantação do MSS
Entre 2004 e 2019, a ONU implantou duas “missões de manutenção da paz” consecutivas no Haiti, sob comando militar brasileiro: a MINUSTAH (2004-2017) e a MINUJUSTH (2017-2019). Desta forma, o país foi ocupado por forças policiais internacionais durante 15 anos. No entanto, o objetivo de “estabelecer a paz” e “estabilizar o país” não só não foi alcançado, pelo contrário, as missões envolveram sérias acusações de violações de direitos humanos. Acusações que incluíram exploração sexual e estupro em massa, assim como a introdução de doenças como a cólera, que causou milhares de mortes.
Após o desastre das missões anteriores, o atual MSS foi proposto como uma força policial internacional com o único objetivo de “auxiliar a polícia local a estabelecer a ordem no país para combater as gangues criminosas” e garantir a “realização de eleições livres”.
Essa força estaria “subordinada” ao Conselho Presidencial de Transição, um governo interino criado para organizar as eleições nacionais. A última vez que foram realizadas eleições presidenciais no Haiti foi em 2016.
Após extensa negociação entre diferentes setores políticos do Haiti, em conjunto com a Comunidade do Caribe, os Estados Unidos, Canadá e França, exigiu-se a renúncia do controverso primeiro-ministro Ariel Henry. Foi apenas em abril deste ano que se estabeleceu um governo de transição, composto por nove membros haitianos.
Este governo interino deverá garantir a realização de eleições para eleger um presidente e um parlamento que assumam o cargo até fevereiro de 2026.
No entanto, construído sem a participação da sociedade haitiana, o novo governo de transição rapidamente se viu envolvido num escândalo: em meados de agosto, três de seus membros foram acusados de corrupção, depois que o diretor de um dos bancos comerciais estatais do país ter denunciado que lhe haviam exigido cerca de US$ 758 mil dólares em troca da manutenção de seu emprego.
Crise no Haiti
Haiti enfrenta uma das crises humanas mais profundas de sua história. Segundo informações da ONU, a violência das gangues deslocou mais de meio milhão de haitianos e deixou quase 5 milhões de pessoas em situação de fome, das quais 1,6 milhão correm o risco de morrer de inanição. Trata-se da maior crise alimentícia no Haiti desde o terremoto de 2010.
De acordo com o Escritório para Assuntos Humanitários (OCHA), 76% dos hospitais ou centros de saúde pararam de funcionar, enquanto 1,5 milhão de crianças não têm acesso à educação. Enquanto, a falta de acesso à eletricidade, água potável e saneamento básico exacerbou a disseminação de doenças como a cólera.
Racismo crescente no vizinho
Neste contexto, milhares de haitianos buscam migrar na tentativa de escapar desta dramática situação, enquanto muitos dos lugares que tentam alcançar estão sofrendo um acentuado aumento do racismo.
Na República Dominicana, país com o qual o Haiti faz fronteira na ilha de Hispaniola, o presidente recentemente reeleito, Luis Abinader, fez do discurso antimigratório a peça central de sua campanha.
Abinader construiu um muro para “se proteger” da imigração ilegal ao mesmo tempo em que fechou e militarizou a fronteira com o Haiti, mantendo uma política ativa de deportação compulsiva e expulsões coletivas de haitianos, incluindo crianças e mulheres grávidas. Política que foi denunciada como “racista de fato” por organizações de direitos humanos, tais como Anistia Internacional.
Na quarta-feira (25), durante seu discurso na Assembleia Geral da ONU em Nova York, o presidente da República Dominicana advertiu que seu governo tomará “medidas drásticas” se “uma missão apoiada pela ONU falhar” no vizinho Haiti. No entanto, Abinader não entrou em detalhes sobre quais seriam essas medidas.
A preocupante escalada racista contra a migração haitiana ganhou notoriedade na mídia depois que Donald Trump, durante o debate presidencial, atacou a suposta “flexibilidade” das políticas de imigração de seu adversários democratas. Fazendo eco a um falso boato que circulava nas mídias sociais, afirmou que os haitianos que chegavam ao país estavam “comendo as mascotes” dos residentes de Springfield, Ohio.
“Em Springfield, estão comendo os cachorros, as pessoas que vieram. Estão comendo os gatos. Estão comendo os animais de estimação das pessoas que moram lá. E é isso que está acontecendo em nosso país, e é uma vergonha”, afirmou Trump durante o debate.
Os falsos rumores espalhados pelo candidato republicano provocaram uma onda de violência contra os migrantes haitianos nos Estados Unidos. Referindo-se aos comentários do ex-presidente dos EUA durante seu discurso na Assembleia Geral da ONU, Edgard Leblanc Fils disse:
“Gostaria de estender saudações fraternas a todos os amigos do Haiti que demonstraram sua solidariedade para com os imigrantes em nosso país e, em particular, àqueles que vivem em Springfield, Ohio”, afirmou.
No próximo dia 30 de setembro, o Conselho de Segurança decidirá o que fazer com a Missão Multinacional de Apoio à Segurança no Haiti.