‘Há um silêncio do mundo sobre papel da URSS contra o nazismo’, diz autor de livro sobre Dia da Vitória
Paulo Visentini discute o que está por trás da disputa de narrativas em torno da vitória soviética sobre a Alemanha nazista
Neste mesmo 9 de maio, há 80 anos, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) derrotava a Alemanha nazista, pondo fim à Segunda Guerra Mundial e descortinando os horrores das atrocidades cometidas nos campos de concentração. O episódio ficou conhecido, desde então, como “Dia da Vitória.” Mas, agora, o acontecimento tem sido um dos nós da guerra de narrativas que apontam para um crescente revisionismo histórico no contexto da crise de democracias ao redor do mundo.
A avaliação é de Paulo Fagundes Visentini, professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor do livro A Vitória: como a União Soviética salvou a civilização do capitalismo totalitário. Para o pesquisador, em entrevista a Opera Mundi, há uma revisão da narrativa construída em torno do acontecimento histórico, com inversões de papeis e distorções graves.
Visentini acredita que esse revisionismo não é só da União Europeia, mas do mundo inteiro. “Quem for [para as comemorações oficiais do Dia da Vitória em Moscou] perde muito. E esse processo começou antes da Guerra da Ucrânia, antes da pandemia. Já tínhamos remoção de monumentos, por exemplo. Estão tentando aproveitar a ocasião para apenas acelerar um processo que já está em marcha”, disse.
Boicotes ao heróis da guerra
Nos últimos anos, países da Europa Oriental têm discutido a remoção de monumentos relacionados à Segunda Guerra Mundial. Em Riga, na Letônia, por exemplo, o Monumento da Vitória foi desmontado, gerando controvérsia entre as comunidades locais. Na Estônia, um tanque do antigo regime foi retirado e levado a um museu, enquanto na Bulgária, um marco arquitetônico também de teor histórico continua no centro de debates públicos.
No livro sobre o Dia da Vitória, o autor chama a atenção para a gravidade desses acontecimentos. Nele, Visentini alerta que “autoridades, escritores e políticos ultraconservadores estadunidenses, acadêmicos ingleses politicamente conectados, governos europeus e movimentos ultranacionalistas do Leste Europeu estão negando à Rússia soviética qualquer relevância histórica na vitória aliada, mesmo ela tendo sofrido a metade das mortes no conflito.”
Em abril passado, a chefe da diplomacia da União Europeia, Kaja Kallas, estimulou líderes europeus a boicotarem o evento do Dia da Vitória em Moscou, no que seria um gesto de solidariedade à Ucrânia. Porém, Visentini aponta que, atualmente, o atual mandatário do país, Volodymyr Zelensky, tem ficado refém de partidos de extrema direita, que mantêm milícias armadas ativas.
“Essas organizações têm seus sites, suas bandeiras copiadas das divisões SS [organização paramilitar do regime nazista] da Segunda Guerra Mundial. Há um silêncio por parte da União Europeia e de outras democracias no mundo quanto a isso, o que é muito preocupante”.
Avanço da extrema direita
A postura do bloco europeu, no entanto, é só a ponta do iceberg, segundo o professor universitário. Há um descontentamento com a sociedade do consumo, em que movimentos anti-sistema não encontram canais de diálogo efetivo com instituições.
Para Visentini, entender a profundidade do problema é importante, pois, segundo ele, aqueles que embarcam na revisão “não são, necessariamente, neonazistas; há um avanço muito grande dessas forças de direita no mundo.”
O autor do livro sobre o Dia da Vitória acredita que apesar dessas novas condenações e classificações, as ideias autoritárias e ultraconservadoras continuam a se movimentar no seio da sociedade. Ele ainda avalia que a eleição de Donald Trump para a Casa Branca representa um alerta de ainda maior gravidade à comunidade internacional.
Isso porque a própria reeleição em si do mandatário estadunidense e o início da guerra tarifária por ele levada a cabo, sobretudo, dão sinais claros de ruptura da posição dos Estados Unidos como protetor da Europa – o que está solidificado, justamente, desde o final da Segunda Guerra Mundial.
“Em uma série de países está havendo um apagamento da memória […] eu acho que com a chegada de Trump, isso piorou ainda mais porque o seu protetor, de repente, se tornou o seu algoz”, avaliou o pesquisador.

Pelagiya Tikhonova / RIA Novosti/ Kremlin
Diplomacia brasileira
Na contramão, contudo, da tendência de líderes europeus, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva participou nesta sexta-feira (09/05) das comemorações oficiais do Dia da Vitória, em Moscou. A viagem acontece ao país antes da chegada do presidente à China, prevista segunda-feira (12/05) . O país asiático tem sido o principal alvo dos EUA na atual guerra tarifária.
Paulo Visentini avalia que a ida de Lula a Moscou representa algo que tem sido a tônica da política externa em muitos momentos do atual mandato, isto é, a adoção do que seria uma política compensatória.
Isso se deve ao fato da gestão anterior, de Jair Bolsonaro, ter significado um ponto fora da curva na tradição diplomática brasileira. A mudança de comportamento do país gerou a necessidade, neste momento, de maior investimento na boa relação com parceiros estratégicos no plano geopolítico, uma vez que a Rússia é integrante do BRICS – bloco econômico fundado em 2006 e composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
“Nem Biden, nem Trump apoiam o BRICS. Pelo contrário, veem o grupo como uma mudança desfavorável no plano internacional. O Brasil foi, entre o BRICS, o que menos apoiou a Rússia [na gestão Bolsonaro]. Então, Lula faz um gesto compensatório neste momento. É algo medido, tanto como gesto simbólico quanto tentativa de criar alternativas para a economia no plano internacional”, disse.
Além das motivações mencionadas por Visentini, o Brasil guarda também uma relação de caráter histórico com a efeméride. O país enviou para a Segunda Guerra cerca de 25 mil soldados para lutarem ao lado dos Aliados – países que se opunham à Alemanha nazista. O esforço militar ocorreu depois do rompimento das relações diplomáticas com o Eixo e ataques a navios brasileiros no Atlântico. Desde o fim do conflito, o Dia da Vitória é comemorado oficialmente no 8 de maio em solo brasileiro.
O Dia da Vitória
A derrota do Exército nazista ceifou cerca de 27 milhões de vidas de cidadãos soviéticos – a nação que perdeu o maior número de combatentes no conflito. A data tornou-se oficial em 1965 e, desde então, tem sido tratada por diferentes governos da Rússia como orgulho nacional.
O evento é composto por grandes celebrações públicas que incluem desfiles militares, cerimônias oficiais e homenagens aos veteranos de guerra. O principal evento ocorre na Praça Vermelha, em Moscou, onde tanques, tropas e aeronaves desfilam diante das autoridades do governo russo e convidados internacionais.
Embora o Dia da Vitória seja uma data importante na Rússia, ela também é celebrada em outros países, mas com diferentes enfoques. A diferença de datas se deve, sobretudo, ao referencial adotado por distintos fusos horários no momento exato da rendição do Exército alemão. Enquanto a Rússia a celebra no dia 9 de maio, outros países da Europa Ocidental o fazem no dia anterior.
