O Haiti é o perfeito exemplo das ambigüidades da intervenção da chamada
“comunidade internacional”. Com o Estado praticamente ausente do
dia-a-dia dos haitianos, a ajuda da ONU, das ONGs e das agências de
cooperação é crucial, afirma o economista Federico Villalpando na
segunda parte da entrevista. Porém, segundo ele, a dinâmica de trabalho
dentro da própria comunidade internacional é pouco eficiente. Apesar
dos milhões de dólares investidos no país, o Haiti não consegue
alcançar um desenvolvimento autônomo.
Qual é o papel do Estado na economia?
O Estado haitiano é muito fraco e não oferece aos cidadãos os serviços
básicos como educação, saúde, acesso à infraestrutura, acesso à água ou
segurança pública. Um exemplo: cerca de 90% da oferta de educação é
privada, incluindo escolas de alto nível ou iniciativas voluntárias. O
Estado não está em condição de proteger ou ajudar a sociedade frente às
forças externas como furacões, secas ou a flutuação dos preços
internacionais dos alimentos, com a especulação que isso implica
internamente. A corrupção é presente em todos os níveis da sociedade. A
distribuição de renda atinge níveis de desigualdade obscenos,
provocando um elevado grau de tensão social e uma violência (física ou
moral) nas relações de poder entre as classes sociais. Apesar de tudo,
o povo haitiano é pacífico, honesto, dinâmico, criativo, trabalhador e
alegre. Outras sociedades que tive a oportunidade de conhecer teriam
desmoronado ou afundado em intermináveis conflitos civis frente a uma
realidade tão desoladora.
A comunidade internacional fez muitas promessas de ajuda ao Haiti. Foram cumpridas?
A chamada “comunidade internacional” (faz sinal de aspas com os dedos)
é muito diversificada nos seus níveis de ação (política, econômica e
social) e de natureza (as agências internacionais, ONGs, agências de
cooperação técnica, agências etc.). Acho que o caso do Haiti se encaixa
perfeitamente no debate atual sobre a eficiência, a utilidade e a
legitimidade da ajuda internacional ao desenvolvimento, por ser um país
muito assistido pela “comunidade internacional”. Calcula-se, por
exemplo, que mais da metade do orçamento do Estado vem de ajuda
externa. Basta dar uma volta pelos bairros onde residem os estrangeiros
em Porto Príncipe, para ver carros com os símbolos de todos os tipos de
ONG, organizações internacionais ou agências de cooperação. Qualquer
pessoa que viaja pelo interior cruza com cartazes anunciando que esta
ou aquela organização está financiando um trecho de estrada, uma obra,
um projeto produtivo, uma escola etc. Toda a política social depende
das Nações Unidas (via Minustah ou agências especializadas) e de
iniciativas de cooperação, entre as quais vale destacar o trabalho dos
médicos cubanos e de grandes ONGs como Médicos Sem Fronteira, Médicos
do Mundo e Ação Contra a Fome.
Existe uma piada aqui que diz que a economia haitiana não é uma
parceria público-privada, mas um misto nacional-cooperação externa. A
carreira de um profissional haitiano ou estrangeiro no país pode saltar
várias vezes entre empregos públicos, cargos de funcionário
internacional, trabalhos em ONGs e o setor privado. A comunidade
internacional é um ator central no país. Sem ela, aspectos inteiros da
vida haitiana entrariam em colapso – saúde, educação, as comunicações,
o acesso ao financiamento etc.
Mas se a ajuda é tão importante, por que a situação não muda?
De fato, é bastante preocupante constatar que, apesar de toda essa
ajuda, o país não consegue entrar num ciclo de desenvolvimento estável
e autônomo. Portanto, a questão não é saber se a comunidade
internacional cumpriu todas as promessas de doações. Acho que a
dinâmica de trabalho entre os atores internacionais e os locais deve
ser reformulada. O primeiro problema é a falta de coordenação entre as
ações internacionais em matéria de desenvolvimento.
O segundo é que o Estado haitiano não está em condições de participar
de maneira autônoma e articulada junto à organização dessa ajuda. A
única ação do Estado se manifesta através de colaborações com as
agências internacionais ou ONGs. É sempre a modalidade de trabalho e o
financiamento delas que prevalecem. O terceiro ponto é que não existe
uma “estratégia de retirada” da comunidade internacional. Não estou
dizendo que tem que sair do Haiti já. Mas pelo menos considerar que, em
alguns aspectos da vida cotidiana, a presença da chamada comunidade
internacional não deve ser a regra, e deve terminar em algum momento. É
uma situação muito estranha para mim, um observador proveniente do Cone
Sul, onde o Estado – para o bem ou para o mal – é muito atencioso em
relação ao seu monopólio sobre a ação social, considerando ingerências
externas como uma falha ou uma perda de soberania.
Atualmente, o quadro geral da ajuda internacional é um universo
hermético, em que se misturam e inclusive competem diversas culturas de
trabalho, modalidades de financiamento, objetivos, prioridades e também
rivalidades pessoais e institucionais. Paradoxalmente, a sociedade
haitiana é o principal beneficiário do apoio da comunidade
internacional, mas é também o mais prejudicado por esses defeitos.
Sempre fico com a sensação amarga de que, apesar das boas intenções e
de alguns bons resultados, se perde no caminho muito tempo e muito
dinheiro.
Podemos imaginar um bom funcionamento do Haiti hoje sem a Minustah?
No meu caso específico, minha presença e meu trabalho teriam sido
impossíveis sem a missão de paz da ONU. Mal posso imaginar hoje o Haiti
sem a Minustah. Mas a presença dos soldados não pode ser eterna. A
Minustah, com todos os seus problemas, criou as condições mínimas para
uma coexistência mais ou menos pacífica das forças políticas locais.
Também permitiu o restabelecimento de uma administração pública
embrionária e a implantação da ajuda internacional. O problema é que a
saída da Minustah não pode ser organizada com êxito sem a colaboração
das forças políticas haitianas, com o apoio de agências internacionais
e países amigos.
Parte 1: Um país privado de forças criativas e produtivas
Parte 3: Obama deve parte de sua vitória aos haitianos
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