Os haitianos são emigrantes profissionais. Do agricultor que vai para a República Dominicana em busca de oportunidades ao rapaz bem nascido que vai estudar nos Estados Unidos, todos têm uma ligação com o mundo exterior e deixam o país sempre que podem. A avaliação é do economista argentino Federico Villalpando, que trabalhou nos dois últimos anos em Porto Príncipe, num programa de cooperação econômica. Ele aponta uma “triste realidade”: “Uma grande parte das forças produtivas e criativas do país não teve outra opção senão oferecer seus talentos no estrangeiro”.
Nesta entrevista concedida na capital argentina, o economista analisa inúmeros aspectos da sociedade haitiana, como a insegurança, que faz com que ninguém queira investir no país e, pior que isso, é um fardo para o povo haitiano, “o primeiro que sofre com a situação”. Também avaliou o cenário regional e afirmou que Barack Obama deve parte de sua vitória aos haitianos. Leia a entrevista, dividida em três partes.
Quase cinco anos após a queda de Jean-Bertrand Aristide e a entrada em operação da missão de paz (Minustah), qual é a situação econômica e social do Haiti?
Vamos começar analisando dados pouco originais, os do Banco Mundial. O Haiti é hoje o país mais pobre do hemisfério ocidental. O Produto Interno Bruto (PIB) por habitante foi de US$ 560 em 2007 – contra US$ 1.170 de Honduras, por exemplo. No índice de desenvolvimento humano do Pnud do mesmo ano, o Haiti é classificado na posição 146 de 177 países. O cotidiano dos haitianos é marcado pela miséria: 54% da população vive com menos de 1 dólar por dia e 78% com menos de 2 dólares. Os indicadores estruturais não são mais animadores. A taxa de alfabetização é de 43%, a esperança de vida não passa de 60 anos, com uma taxa de mortalidade infantil de 60 por 1.000. A aids atinge 2,2% da população entre 15 e 49 anos, ou seja, a mais produtiva. O território é devastado pela crise econômica. Hoje em dia, a floresta ocupa menos de 2% do país.
Qual é a especificidade dos problemas do Haiti?
Em termos gerais, acho que nos problemas econômicos, o Haiti não é muito diferente dos vizinhos. A diferença é que o país tem acumulado décadas de violência e turbulência política, o que acentuou de maneira dramática suas fraquezas. A economia haitiana não oferece oportunidades de trabalho suficientes, dignas e economicamente produtivas. Portanto, uma grande proporção da população, especialmente a que vive nas cidades, tem uma vida desarticulada, alternando estratégias de sobrevivência, tais como empregos precários e ocasionais, assistência de ONGs, mendicância etc.
A outra saída é a emigração, também muito comum. Passou a ser uma característica da sociedade haitiana, desde o agricultor que vai para Porto Príncipe em busca de oportunidades ou vai trabalhar em plantações na República Dominicana, até o rapaz de boa família que vai estudar nos Estados Unidos. Todos os haitianos têm uma ligação com o mundo exterior. Estima-se que um quarto da população haitiana viva fora do país – cerca de dois milhões de habitantes, espalhados entre República Dominicana, Estados Unidos, Canadá, o resto do Caribe e um pouco na Europa. A diáspora haitiana traz uma valiosa contribuição à economia local, através das remessas, que representam 20% do PIB nacional. No entanto, isto não deve esconder a triste realidade: uma grande parte das forças produtivas e criativas do país não teve outra opção senão oferecer os seus talentos no estrangeiro.
Acho que a fonte principal dos problemas do Haiti é o mundo rural, que representa ainda 60% da população do país e um terço do PIB. A falta de oportunidade obriga os camponeses a migrar para as cidades em busca de uma chance e de serviços básicos, o que enfraquece ainda mais a agricultura doméstica, deteriora a frágil situação alimentar do país e provoca uma expansão urbana descontrolada.
Qual foi o impacto dos desastres naturais na ilha?
O Haiti sofreu em 2008 a passagem de uma tempestade tropical e três furacões muito violentos. Em relação ao número de vítimas, o balanço foi muito menos grave que em 2004. Esta foi uma boa notícia, que mostra que os esforços de sensibilização e prevenção, desde então, tiveram bons resultados. Contudo, o número de vítimas haitianas ultrapassa o de países da região que sofrem a mesma ação devastadora da natureza. Os furacões de 2008 afetaram tanto as zonas rurais quanto as urbanas, deixando atrás mortes, doenças e danos materiais. Isso reforçou o sentimento de frustração e abandono do povo. Na agricultura, grande parte da safra foi perdida, agravando a situação alimentar e acelerando o êxodo rural. A infraestrutura – estradas, pontes – sofreu grandes danos, provocando o isolamento de populações inteiras.
A questão da segurança e do tráfico de drogas constitui um grande obstáculo para o desenvolvimento?
Não há dúvida. A insegurança diminuiu bastante nos últimos anos, mas ainda há um longo caminho a percorrer. A verdade é que ninguém quer investir num país inseguro. Mas quero recordar que a insegurança, seja física ou jurídica, não é apenas um problema para os investidores estrangeiros. O povo haitiano é o primeiro que sofre com a situação.
A questão do tráfico é também crucial. O Haiti fica na rota das drogas para os Estados Unidos. Basta olhar o mapa para imaginar o trajeto. Estima-se que entre 8% e 12% da droga que chega aos Estados Unidos passe pelo Haiti. Dá para perceber as poderosas forças que atuam no nível político, seja do lado da produção de drogas, seja do lado do consumo. O tráfico de droga, junto com todos os negócios ilegais, é responsável pela contínua debilidade do Estado haitiano.
A República Dominicana é um grande ponto de atração para os turistas. O Haiti pode aspirar a um papel semelhante?
O Haiti foi, há muito tempo, um pioneiro do turismo na região. Nas últimas décadas, os países caribenhos foram desenvolvendo o setor, enquanto o Haiti perdeu a atratividade. Hoje, a hotelaria no Haiti, e eu nem usaria o termo “turismo”, se limita aos movimentos da diáspora (parentes, músicos, artistas), aos estrangeiros das agências internacionais, ao pessoal de algumas empresas (telefonia, por exemplo) e jovens casais que vão para adotar crianças.
Ainda existem poucas iniciativas bem sucedidas, pontuais, como a praia de Labadie, no norte, que está no caminho de alguns cruzeiros. O crescimento do turismo na vizinha República Dominicana e no Caribe em geral deslumbra os funcionários, que sonham com uma indústria nacional capaz de atrair turistas ricos. Muitos falam do tema como se fosse uma solução milagrosa para os problemas do país.
Além do patrimônio natural, o Haiti tem um patrimônio cultural único. O turismo pode ser, a médio prazo, uma fonte de receitas para o Haiti. Ainda assim, a criação de uma indústria turística que atrai visitantes ricos, com divisas que fiquem no país e que beneficiam a população local, não será tarefa fácil. Não basta construir hotéis e esperar os clientes. Faltam estratégias de promoção, infraestrutura física – estradas, hotéis, manutenção das praias, restauração do patrimônio, comunicações etc. Também é necessária uma infraestrutura institucional. Coisas como alfândega, controle sobre a qualidade dos alimentos, adaptação dos regulamentos locais para as normas internacionais, circuitos organizados para os viajantes, coordenação política com a República Dominicana etc. Sem falar da formação dos trabalhadores, funcionários de hotéis, polícia, alfândega, motoristas, guias etc., e da sensibilização da população em geral.
Parte 2: país não consegue se desenvolver sem ajuda internacional
Parte 3: Obama deve parte de sua vitória aos haitianos
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