Mais de cinquenta acadêmicos e intelectuais de diversos países, como Argentina, França, Estados Unidos, Austrália, Reino Unido, Espanha, Suíça e Itália, se uniram para publicar uma carta aberta que critica as pressões exercidas pelo bilionário sul-africano Elon Musk contra o Brasil e convoca “todos os que defendem valores democráticos” a apoiarem o país na luta por sua soberania digital.
As informações são da Folha de São Paulo, que obteve o texto antes de ser divulgado publicamente nesta terça-feira (17/09). A iniciativa é liderada por economistas e autores renomados, que se destacam por suas pesquisas sobre as big techs e seu impacto no cenário global.
No documento, signatários expressam preocupação com a soberania digital do Brasil e a atuação de grandes corporações tecnológicas, que, segundo eles, “se comportam como governantes”, aproveitando da falta de acordos internacionais para regulamentar suas atividades.
A carta destaca que o Brasil se tornou um ponto central na disputa entre as gigantes tecnológicas e países que buscam um ambiente digital mais democrático. O embate com Musk, no ponto de vista dos autores, é parte de um esforço maior para limitar a autonomia de nações soberanas na definição de uma política digital independente.
“A disputa do Brasil com Elon Musk é apenas o mais recente exemplo de um esforço mais amplo para restringir a capacidade de nações soberanas de definir uma agenda de desenvolvimento digital livre do controle de megacorporações sediadas nos EUA”, afirma o texto.
Ainda, os intelectuais alertam que as ações do bilionário sul-africano enviam um sinal perigoso ao cenário internacional, sugerindo que democracias que tentam conquistar independência em relação às big techs arriscam terem suas estruturas ameaçadas, com algumas dessas corporações apoiando movimentos de extrema direita.
Entre os que assinam o documento, estão os economistas franceses Gabriel Zucman, Julia Cagé e Thomas Piketty, a filósofa e professora da Harvard Business School Shoshana Zuboff, o ex-ministro da Economia da Argentina Martín Guzmán e além do professor do MIT, Daron Acemoglu.
Vindos do Brasil, assinam o ex-diretor-geral da agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para Alimentação e Agricultura (FAO), José Graziano, e acadêmicos de universidades como UFC, UFRJ e UFABC, como Helena Martins, Marcos Dantas e Sergio Amadeu da Silveira.
O documento critica o lobby das big techs contra políticas públicas e acusa as corporações de se aliarem a governos autoritários quando seus interesses econômicos estão em risco. “Quando seus interesses financeiros estão em jogo, elas trabalham de bom grado com governos autoritários”, afirma também a carta.
Por fim, os signatários pedem ao Brasil que siga firme em sua agenda digital e recomendam que a ONU apoie o país neste processo. “Este é um momento crucial para o mundo”, concluem.
Leia, abaixo, a carta completa:
“Contra o Ataque das Big Tech às Soberanias Digitais
Nós, os signatários, desejamos expressar nossa profunda preocupação em relação aos ataques em curso das empresas Big Tech e seus aliados à soberania digital do Brasil. A disputa do Brasil com Elon Musk é apenas o mais recente exemplo de um esforço mais amplo para restringir a capacidade de nações soberanas de definir uma agenda de desenvolvimento digital livre do controle de megacorporações sediadas nos EUA.
No final de agosto, o Supremo Tribunal Brasileiro baniu o X do ciberespaço brasileiro por não cumprir decisões judiciais, exigindo a suspensão de contas que incitaram extremistas da extrema direita a participar de tumultos e ocupar as sedes do Legislativo, Judiciário e Executivo em 8 de janeiro de 2023. Posteriormente, o presidente Lula da Silva deixou claro a intenção do governo brasileiro de buscar independência digital: reduzir a dependência do país de entidades estrangeiras para dados, capacidades de IA e infraestrutura digital e promover o desenvolvimento de ecossistemas tecnológicos locais. De acordo com esses objetivos, o Estado brasileiro também pretende forçar as empresas de big tech a pagar impostos justos, cumprir as leis locais e ser responsabilizadas pelas externalidades sociais de seus modelos de negócios, que frequentemente promovem violência e desigualdade.
Esses esforços têm sido alvo de ataques do proprietário da X e dos líderes de extrema direita, que reclamam sobre democracia e liberdade de expressão. Mas justamente porque o espaço digital carece de acordos regulatórios internacionais e democraticamente decididos, as grandes empresas de tecnologia operam como governantes, determinando o que deve ser moderado e promovido em suas plataformas.
Além disso, o X e outras empresas começaram a se organizar, juntamente com seus aliados dentro e fora do país, para minar iniciativas que visam a autonomia tecnológica do Brasil. Mais do que advertir o Brasil, suas ações enviam uma mensagem preocupante para o mundo: que países democráticos que buscam independência da dominação das big techs correm o risco de ter suas democracias perturbadas, com algumas big techs apoiando movimentos e partidos de extrema direita.
O caso brasileiro se tornou a principal frente no conflito global em evolução entre as grandes corporações de tecnologia e aqueles que buscam construir um espaço digital democrático e centrado nas pessoas, com foco no desenvolvimento social e econômico.
As empresas de tecnologia não apenas controlam o mundo digital, mas também fazem lobby e operam contra a capacidade do setor público de criar e manter uma agenda digital independente baseada em valores, necessidades e aspirações locais. Quando seus interesses financeiros estão em jogo, elas trabalham de bom grado com governos autoritários. O que precisamos é de espaço digital suficiente para que os Estados possam direcionar as tecnologias colocando as pessoas e o planeta à frente dos lucros privados ou do controle unilateral do Estado.
Todos aqueles que defendem valores democráticos devem apoiar o Brasil em sua busca pela soberania digital. Exigimos que as big techs cessem suas tentativas de sabotar as iniciativas do Brasil voltadas para a construção de capacidades independentes em inteligência artificial, infraestrutura pública digital, gestão de dados e tecnologia em nuvem. Esses ataques minam não apenas os direitos dos cidadãos brasileiros, mas também as aspirações mais amplas de cada nação democrática de alcançar a soberania tecnológica.
Também pedimos ao governo do Brasil que seja firme na implementação de sua agenda digital e denuncie as pressões contra ela. O sistema da ONU e os governos ao redor do mundo devem apoiar esses esforços. Este é um momento crucial para o mundo. Uma abordagem independente para recuperar a soberania digital e o controle sobre nossa esfera digital pública não pode esperar. Também há uma necessidade urgente de desenvolver, dentro do quadro da ONU, os princípios básicos de regulação transnacional para acessar e usar serviços digitais, promovendo ecossistemas digitais que coloquem as pessoas e o planeta à frente dos lucros, para que esse campo de provas das Big Tech não se torne prática comum em outros territórios“.