Se não fosse uma tragédia nacional, o assassinato dos dois homens mais importantes da Guiné-Bissau poderia ser comparado ao cenário de um livro de Frederick Forsyth, escritor policial britânico famoso por incluir mercenários africanos em suas obras. A história tem todos os ingredientes de um romance policial: violência, rivalidade, traição, tráfico de armas e drogas.
Casualmente, Forsyth estava em Bissau, capital do país, quando uma bomba matou o chefe do Estado Maior, general Tagmé Na Waié, na noite do último domingo e, horas depois, uma rajada de tiros acabou com a vida do presidente João Bernardo “Nino” Vieira.
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Assassinados o presidente e o chefe do Estado Maior
Ambos foram heróis da luta pela libertação do país contra o colonialismo português. Mas, com o tempo, as raízes tribais falaram mais alto e os dois acabaram se tornando rivais. A ponto de, nos últimos anos, atentarem um contra o outro em várias ocasiões. Tagmé, um balanta, sempre disse que o seu destino estava ligado ao de Nino, da etnia papel. Uma de suas últimas ordens foi clara. “Se ele me matar, vocês o matam”, disse Tagmé a seus homens.
“As tradicionais rivalidades entre as etnias da Guiné tiveram nos últimos meses o seu paroxismo no confronto armado entre os homens fiéis ao presidente e os que juravam lealdade ao general. Balantas apoiavam Tagmé, enquanto os agentes da minoritária etnia papel se mantinham ao lado de Nino”, explica o analista português João Carlos Barradas, ex-jornalista e atualmente professor de Relações Internacionais da Universidade Independente.
Como disse o ex-presidente português Mario Soares, “quem vive na violência morre na violência”. E “além de violento, Nino não era amigo de ninguém”, acrescenta o professor universitário português Eduardo Costa Dias, pesquisador da política guineense.
História conturbada
A história moderna da Guiné-Bissau tem sido extremamente violenta desde 1980, quando Nino deu um golpe de Estado contra Luiz Cabral, irmão do “fundador da nacionalidade”, Amilcar Cabral. Luiz foi o primeiro presidente depois da independência e Nino o afastou do poder porque sempre se achou no direito de exercê-lo.
Foi dessa forma que “a Guiné-Bissau perdeu qualquer hipótese de estabilidade”, avalia Barradas.
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Poucos anos de independência e muitos golpes
O golpe de Estado, mais do que afastar Cabral do poder, acabou consumando uma ruptura entre os dirigentes de origem cabo-verdiana e os líderes guineenses, que constituíam a gênese do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo-Verde (PAIGC), criado por Amilcar Cabral, como sonho de unidade de duas colônias. Com a cisão, acrescentou Barradas, “o novo Estado ficou ainda mais dependente dos interesses dos vizinhos Senegal e Guiné-Conacri”.
Foi quando “os conflitos étnicos que extravasam as fronteiras coloniais recrudesceram e, sem quadros nem projetos, a Guiné-Bissau afundou-se ainda mais na miséria e nas rivalidades de homens de armas na mão”, explica o analista.
Nino foi duas vezes presidente. Primeiro, depois do golpe de 1980, legitimado nas eleições de 1994. Exilado em Portugal em 1999, fruto de outro golpe de Estado concebido por uma junta militar chefiada pelo falecido general Asumane Mané e pelo general Tagmé, chefe do Estado Maior, acabou voltando ao país em 2005 e conseguiu, com bastante esforço e falsas promessas, ser eleito novamente.
Segundo o jornal Público, “quando retornou ao país, em 2005, as chefias ligadas à antiga junta militar eram-lhe naturalmente hostis e o regresso foi negociado em troca de dinheiro. Apesar de ter vencido de novo as eleições presidenciais, teria se sentido inseguro”. Ou seja, a última presidência já começou de forma precária.
“O país podia ser melhor, se Nino Vieira não tivesse voltado ao poder [em 2005]”, considera o antropólogo Mamadou Jao, diretor do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (Inep), de Bissau.
Futuro? “Agora, é possível que tudo continue a apodrecer e meia dúzia de homens fortes repartam o poder por uns tempos”, pensa Barradas.
Guarda presidencial desarmada
De costas viradas para os seus militares, Nino passava temporadas na Guiné-Conacri, junto ao então presidente Lansana Conté, com quem mantinha forte ligação desde os tempos da luta colonial. Mas Conté morreu em dezembro, e o agora falecido presidente da Guiné-Bissau perdeu o pouco que lhe restava de influência dentro do seu país. Na condição de chefe do Estado Maior, seu eterno rival, o general Tagmé, não deixou passar a oportunidade e mandou desarmar a guarda presidencial.
Nino sabia que estava exposto e tentou matar Tagmé. O atentado falhou, dizem fontes em Bissau, mas o general não esqueceu e no princípio de janeiro, a casa do presidente foi assaltada por “elementos desconhecidos”.
Os acontecimentos precipitaram-se. Segundo o diário Correio da Manhã, de Lisboa, Nino viajou à Guiné-Conacri, aparentemente para interceder pelo filho do seu amigo, o falecido ex-presidente Conté, preso pelas novas autoridades do país e acusado de tráfico de drogas.
Não conseguiu libertar o filho do amigo, mas não voltou de mãos vazias. No porão do avião, garante o Correio da Manhã, vinha a bomba que acabou com a vida de Tagmé. De fabricação tailandesa, quando estourou, fez ruir o edifício do Estado Maior, algo nunca visto no país. Um porta-voz militar disse à televisão portuguesa que “nem no tempo da guerra [colonial] vimos uma coisa assim”. Pela sofisticação, muitos pensam que narcotraficantes facilitaram a aquisição da bomba.
Narcotráfico
Nino também encontrou um país profundamente envolvido no tráfico internacional de armas e drogas, e não conseguiu escapar à sua influência.
Sem meios navais e aéreos para patrulhar o país, mal pagos e vivendo na miséria, os militares guineenses foram um alvo fácil dos traficantes latino-americanos, “que transformaram a Guiné-Bissau numa placa giratória do tráfico de cocaína para a Europa”, afirmou Barradas.
A entrada intensa do dinheiro do narcotráfico num dos países mais pobres do mundo subverteu o que ainda restava das estruturas administrativas e corrompeu sem remédio as Forças Armadas e a polícia. A situação econômica também não ajudou.
“As desavenças pelo controle das escassas receitas que o cajú, o marisco e o arroz proporcionavam, os confrontos pelo lucros de contrabandos e tratos diversos, passaram a assumir um cunho ainda mais virulento”, acrescenta o analista português.
Segundo o relatório anual sobre a situação do tráfico internacional de drogas mundial, publicado na semana passada pelo Departamento de Estado em Washington, em julho de 2008 os militares guineenses impediram que agentes policiais do país e funcionarios da Agência Antidrogas norte-americana (DEA) pudessem inspecionar um jato Gulfstream-2, com matrícula venezuelana, que aterrissou sem autorização no aeroporto de Bissau, com um carregamento de drogas. O piloto foi preso, mas um juiz o libertou dias depois e ele desapareceu, com o avião.
Cortado em pedaços
E Forsyth, o escritor britânico, não estava longe dali. Há dias em Bissau, a investigar o cenário para um novo livro, ele relatou à BBC a longa agonia do ex-presidente guineense.
“Eles foram à residência dele, jogaram uma bomba pela janela que o feriu, mas não matou. Depois, o teto desabou e isso o feriu, mas também não o matou. Ele saiu com dificuldades dos escombros e [os soldados] atiraram. Mas ele não morreu depois disso. Eles o levaram para a casa da sogra e o cortaram em pedaços com machados”, relatou à emissora pública o autor de “Os Cães da Guerra”.
Saiba mais sobre Amílcar Cabral e Frederick Forsyth.
* Rui Ferreira é português e tem um tio que prestou serviço militar na Guiné-Bissau durante o conflito colonial.
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