Num bairro pitoresco de Lisboa, outrora de classe trabalhadora, uma casa branca simples de dois andares destaca-se entre as demais, marcada pela figura em cerâmica azul de uma bela jovem na fachada. Seu nome é Blimunda, personagem do romance Memorial do Convento, que deu fama mundial ao prêmio Nobel José Saramago, em 1987.
Dentro, o escritor de 86 anos, considerado o melhor autor vivo ao lado de Philip Roth por críticos literários como Harold Bloom, desce as escadas lentamente para uma rara entrevista de quatro horas ao Opera Mundi, em seu lar.
Poucos duvidam da genialidade literária, mas Saramago também é famoso pelas ferrenhas posições esquerdistas – recentemente, entrou em choque com o primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi, a quem chamou de “vômito”, e por comparar os territórios palestinos com Auschwitz.
“Com a atual crise econômica, estão tentando salvar os bens, mas nada substancial vai mudar. Capitalismo era, capitalismo será”, diz ele, prevendo que a extrema direita continuará a crescer na Europa. Sua única esperança parece ser o recém-eleito presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. O escritor rejeita o venezuelano Hugo Chávez, que sofre com a “tentação perigosa do autoritarismo”, segundo ele.
Critica também outros líderes da esquerda latino-americana, mas se diz fiel aos princípios comunistas, ainda que não veja neles nenhuma aplicação prática nos dias de hoje. “Sou um comunista hormonal, em meu corpo há hormônios que me fazem crescer a barba e outros que me fizeram ser comunista. Não quero me transformar em outra pessoa”.
Para facilitar a vida do repórter, que não fala português, Saramago concede a entrevista em espanhol, com voz muito fraca – consequência de uma doença respiratória potencialmente fatal contraída há dois anos. Mas as mãos estão em plena atividade e ele escreve com profusão.
Na próxima quinta-feira (25), apresentará seu novo livro, O Caderno, uma compilação das populares postagens em seu blog, nas quais ataca o papa e George W. Bush. E o escritor concluiu recentemente outro romance, que será publicado no outono. Terá cerca de 200 páginas e guarda uma surpresa, segundo ele.
Será o mais recente de inúmeros livros, sendo vários best-sellers e um transformado em filme: Ensaio sobre a Cegueira, do cineasta brasileiro Fernando Meirelles. Um feito extraordinário, nas próprias palavras do escritor, para alguém nascido em 1922 numa aldeia pobre distante de Lisboa, no interior português. Um lugar onde, no mês passado, ergueram uma estátua sua na praça central, sentado num banco e, é claro, lendo um livro.
Infância bucólica
Saramago sorri ao lembrar da vida na pacata aldeia onde nasceu, Azinhaga, cerca de 100 quilômetros a nordeste de Lisboa. Ele passou grande parte da infância com os avós maternos, camponeses analfabetos que criavam porcos e moravam numa cabana com chão de terra e teto com goteiras. Seus pais mudaram para Lisboa em busca de uma vida melhor quando ele tinha dois anos, e o pai conseguiu emprego como guarda de trânsito. Mas isso não representou para Saramago uma ruptura com as raízes rurais.
“O mais importante foi não ter cortado os laços com o povoado. Todas as férias, eu passava lá. Chegava e a primeira coisa que fazia era tirar os sapatos e ficar com meus companheiros de aventura no rio, nos campos, nos olivais. E quando tinha de voltar para Lisboa, a última coisa que eu fazia era calçá-los, mas como o pé havia crescido nesse meio-tempo, entravam com alguma dificuldade”, relembra, sorrindo.
O escritor gostava de sentar-se sob uma figueira para ouvir lendas e histórias de fantasmas contadas pelo avô Jerônimo. Para alguns, isso explica seu gosto pelo fantástico nos romances, escritos com a conhecida ausência de pontuação, mas ele descarta a ideia. “Não, nada, nada. Ele, como todos os avôs do mundo, contava histórias. Se, por contar histórias, os avôs fossem escritores, todos seriam escritores. Quanto a mim, não sei por que gostava de ler. Por sorte, havia a biblioteca municipal”.
Como os pais não podiam pagar a escola, aos 13 ele estudou para se tornar mecânico. Trabalhou nas três décadas seguintes como serralheiro, numa metalúrgica e numa agência de previdência, publicando seu primeiro romance em 1947, sem sucesso. A partir de então, praticamente parou de escrever – ou assim pensou até o ano passado, quando descobriu caixas cheias de manuscritos daquele período que esquecera completamente.
Mas escrever não era o foco de Saramago na época. No fim dos anos 60, ele ingressou no Partido Comunista, tornando-se vice-diretor do recém-nacionalizado Diário de Notícias após a queda da ditadura fascista em Portugal, em 1974. Grande parte da desconfiança dos intelectuais portugueses em relação a Saramago vem desse período, pois ele supostamente expurgou do jornal todos que se opunham ao Partido Comunista, acusações que o escritor nega com veemência. Após ser demitido, finalmente dedicou-se à literatura para sobreviver. Logrou mais que isso.
Muito mais que uma esposa
Hoje, Saramago passa apenas alguns meses do ano em Lisboa. Sua residência permanente são as Ilhas Canárias, na Espanha, onde vive em exílio simbólico desde 1992, quando o governo português impediu que seu romance supostamente herético O Evangelho Segundo Jesus Cristo fosse indicado a um prêmio literário europeu.
Os relógios da casa nas Canárias estão ajustados para as quatro da tarde, hora em que conheceu a esposa Pilar del Rio, uma jornalista espanhola 30 anos mais nova com quem se casou em 1998. É a pessoa que o ajudou a descer as escadas, e que hoje ele considera seu verdadeiro lar (abaixo, foto dos dois em agosto de 2008, em Madri; crédito: EFE).
Leia as outras partes:
2ª: Uma autobiografia seria a coisa mais chata do mundo
3ª: Israelenses aprenderam bem as lições recebidas dos nazistas
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