Na segunda parte da entrevista, o economista Bernardo Kliksberg, assessor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), afirma que, na América Latina, os porta-vozes do neoliberalismo ortodoxo não reconheceram a derrota dessa visão de mundo em Wall Street. Para ele, contudo, a integração regional e práticas econômicas “com face humana” podem derrotar as velhas políticas e dar origem a um processo virtuoso de recuperação e desenvolvimento.
Há alguns anos fala-se da criação do Banco do Sul, de uma moeda comum. São medidas como estas que servem para enfrentar a crise?
É fundamental, é uma estratégia central. No Leste europeu, foi preciso recorrer a empréstimos do FMI e as missões desta organização foram muito severas e as sociedades explodiram. Na América Latina, pelo contrário, surgiu esta grande carta, o processo de integração que permite ideias novas quando há projetos políticos similares, ainda que haja caminhos diferentes. Neste sentido, existem exemplos muito importantes, como o recente acordo comercial entre Argentina e Brasil para realizar as transações econômicas nas moedas de cada país. A integração regional séria é uma estratégia fundamental, como a criação do Banco do Sul, a busca de soluções financeiras comuns, a negociação conjunta frente aos Estados Unidos. Uma América Latina mais integrada no econômico, no social, pode disparar um potencial fenomenal.
O senhor sabe que a morte de uma ideologia é um processo longo. Na América Latina, ainda há forças políticas que representam este modelo. Levando isso em conta, o senhor realmente acredita que o neoliberalismo foi derrotado em Wall Street?
Bem, em Wall Street o neoliberalismo foi derrotado intelectualmente, mas não política, financeira e economicamente. Escrevi, com o prêmio Nobel de Economia Amartya Sen, o livro Primero la Gente, que foi premonitório. Nele afirmamos que Wall Street cairia por três razões. A primeira foi o tremendo fracasso da desregulamentação selvagem dos mercados. O governo de Bush desregulamentou totalmente o funcionamento dos mercados parafinanceiros dos Estados Unidos. Em segundo lugar, os altos executivos dos centros financeiros intoxicaram suas empresas com operações de altíssimo risco, como os créditos podres, com o único objetivo de ganhar comissões impressionantes, sem se importar com o fato que de acabariam por destruí-las. A terceira grande razão foi a própria ideologia, o fundamentalismo de mercado que resolvia tudo e agora está derrotado. Na América Latina, os porta-vozes do neoliberalismo ortodoxo não reconheceram esta derrota e se aproveitam da ignorância de amplos setores da sociedade sobre o que ocorre no campo da teoria econômica. Também existem os interesses econômicos, tanto nos Estados Unidos como na América Latina, e por isso a batalha continua.
Depois desse diagnóstico sobre os processos em curso, o senhor é otimista? É possível ser otimista?
O desafio é muito grande, mas sou otimista por várias razões. Em primeiro lugar, porque a América Latina conheceu a ideologia neoliberal em ação, não é uma discussão teórica. A sociedade está suficientemente traumatizada com o neoliberalismo para entender que neste caminho não há nenhuma solução. Os norte-americanos estão se conscientizando agora sobre o que vivemos nos anos 1980 e 1990. Então, por este lado, há um antídoto. Em segundo lugar, temos um nível de participação cidadã que é o maior da história do continente. Por exemplo, a última pesquisa da Latinobarómetro perguntou a habitantes de 17 países o que ele achavam das manifestações de rua contra o sistema em comparação com os abaixo-assinados: 70% se disseram a favor dos protestos. A terceira é que foram construídos projetos políticos que apontam, por caminhos diferentes, inclusive com erros, para uma economia com face humana. Mas eu acrescentaria uma quarta razão: o potencial humano. É um capital social muito importante que, somando-se a uma economia com face humana, pode dar origem a um processo virtuoso. Para mencionar alguns resultados, consideremos a Argentina, com todas as suas limitações. A taxa de desemprego no país é hoje metade do que era em 2002. Para a opinião pública, para a sociedade, está cada vez mais claro que o neoliberalismo não é o caminho, que não há solução além da economia com face humana e que existe mobilização. Em tudo isso a América Latina está avançando.
Leia a primeira parte da entrevista:
América Latina não está preparada para a crise
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