“A América Latina se despede de mais um dos grandes autocratas que marcaram sua longa história de caudilhos e ditadores”, escrevia o El País nesta quinta-feira (12/09), um dia após a morte de Alberto Fujimori, ex-ditador sangrento peruano, no último 11 de setembro.
Falecido aos tardios 86 anos, Fujimori deixou um rastro de sangue e controvérsias por onde passou, desde seu governo forçado até sua fuga, primeiro ao Japão e depois ao Chile. Seu legado inclui não apenas a opressão de mulheres indígenas, estrangeiros e civis peruanos, mas também a deterioração das finanças nacionais, culminando em uma retirada covarde do cenário político.
Para compreender a visão daqueles que o enxergam como uma mancha sangrenta na história peruana, no entanto, é preciso começar pelo início. Nascido em Lima em 1938, Fujimori era filho de imigrantes japoneses oriundos da província de Kawachi. Seus pais, que eram costureiros, reparadores de pneus, entregadores de rosas e proprietários de uma pequena granja avícola, sustentaram com esforço seus três filhos e duas filhas.
Mais tarde, Fujimori se posicionaria como um outsider no panorama político peruano, utilizando sua origem como um trunfo. Eventualmente, ele ergueria uma das famílias políticas mais influentes do país na atualidade.
Quem foi Fujimori?
Fujimori, apelidado “El Chino” por amigos, cursou graduação na Universidade Nacional Agraria La Molina em 1957, e se formou em 1961 como engenheiro agrônomo. Mais tarde, passaria a lecionar matemática, tendo obtido mestrado em matemática na Universidade de Wisconsin-Milwaukee nos Estados Unidos quase uma década mais tarde, em 1969.
A rápida ascensão de Fujimori ao poder também teve a ver com a sua formação, e uma imagem cuidadosamente construída para ele. Enquanto o Peru estava em meio à ruína econômica, em 1990, ao fim do governo de cinco anos de seu antecessor Alan García, o ex-ditador aparentava ser uma escolha distinta, de um homem sério, exato, mas simples, fazendo campanha em um trator.
Seu debate com o escritor e, futuramente, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa entrou para a história. Enquanto Vargas Llosa anunciava um choque econômico, sem esconder as suas intenções, Fujimori passou a impressão — que mais tarde se provaria errônea — de um candidato contido, sem pressa, de parcimônia. É apenas após quase quatro décadas de exposição pública que a sua imagem pareceria menos impenetrável do que era naquele momento inicial.
Vencendo as eleições com 62,32% dos votos, Fujimori assumiu o controle do país de 1990 a 2000, e passou por uma sucessão de eventos que mais tarde o levariam à prisão por 16 anos. Ele foi solto há dez meses para morrer em liberdade, para grande desgosto das vítimas dos massacres que ele teria ordenado.
‘Autogolpe’ e o resto de uma amarga história
Já presidente, em seu primeiro mandato, no dia 5 de abril de 1992 Fujimori realiza um golpe de Estado com o respaldo das Forças Armadas, dissolvendo o Congresso, intervindo no Judiciário e no Tribunal Constitucional, e, então, consolidando todo o poder estatal em suas mãos.
Sua posse pós-golpe foi assistida por Fernando Henrique Cardoso, presidente do Brasil na época, para quem o homólogo peruano garantiu “capacidade necessária para levar adiante as instituições democráticas” do país.
Na ocasião, FHC fez um rápido pronunciamento, no qual desejou “paz e felicidade” ao povo do Peru, no que viria a ser um período sangrento, para sempre marcado no país. O brasileiro, por sua vez, ainda prometia que a democracia garantiria “desenvolvimento” que permitisse ao povo “viver cada vez melhor”.
No entanto, a pressão exercida por organizações internacionais e diversos países obrigou Fujimori a convocar um Congresso Constituinte. Este Congresso elaborou e promulgou a nova Constituição em 1993, que permanece em vigor até os dias atuais.
Apesar dessas concessões, ele manteve sua administração autoritária e a presença de parapoliciais e paramilitares, todos sob o comando de Vladimiro Montesinos, chefe de fato do Serviço de Inteligência Nacional do Peru (SIN) e assessor de segurança presidencial.
“Dissolver, dissolver” foi a frase repetida pelo tirano ao anunciar o que denominou como “autogolpe”. Segundo o jornal argentino El Clarín, essas palavras permaneceriam na memória dos peruanos por muitos anos.
A sua popularidade, no entanto, não sofreria tanto abalo, sendo recuperada pouco tempo depois, com uma operação cuidadosamente planejada, na qual investigadores da polícia, com o apoio da embaixada dos Estados Unidos, capturaram Abimael Guzmán, líder do Sendero Luminoso, e outros membros de sua liderança. A prisão ocorreu em uma noite de sábado, em setembro do mesmo ano.
Quatro anos mais tarde, ocorria a operação Chavín de Huántar, realizada para resgatar a residência do embaixador japonês em Lima, tomada por guerrilheiros do Movimento Revolucionário Tupác Amaru (MRTA) em 1996. Durante o evento, cerca de 800 convidados foram feitos reféns. Os guerrilheiros exigiam a liberação de outros membros e protestavam contra as condições de vida no campo.
Embora as ações tenham fortalecido Fujimori naquele momento, seu legado segue marcado por crimes contra a humanidade e por seu autogolpe, cujos impactos foram amplamente repercutidos e continuam a afetar a percepção pública de seu governo.
Vítimas que não serão reparadas
Entre as acusações contra Fujimori estão as múltiplas operações de seu esquadrão da morte, Colina, responsável pelo assassinato e desaparecimento de centenas de peruanos, além de ações de extermínio em comunidades, como nos casos de Barrios Altos e La Cantuta, ambos ocorridos no início dos anos 1990.
Ele também foi acusado de realizar esterilizações forçadas de mulheres pobres, principalmente em localidades andinas, nas quais se fala apenas quéchua ou outras línguas de origem indígena, e não o espanhol.
Conforme o processo, fundamentado em depoimentos de milhares de peruanas, o governo Fujimori realizou os procedimentos sem informar adequadamente as vítimas. Oficialmente, a justificativa era o “planejamento populacional” para controlar a pobreza, mas os relatos revelam uma prática de violência de gênero, resultando na esterilização de mais de 250 mil mulheres.
Em uma decisão, da Suprema Corte do Chile, as esterilizações forçadas realizadas durante seu governo foram classificadas como “um ato de extrema crueldade e desprezo pela dignidade da pessoa humana, prejudicial aos valores essenciais que a humanidade tem reconhecido por todo ser humano.”
Sobre a responsabilidade de Fujimori nesses eventos, o tribunal concluiu que “existem presunções fundadas ou indícios razoáveis” de que o ex-presidente “promoveu uma política agressiva de planejamento familiar que visava aplicar preferencialmente e massivamente um sistema de tratamento cirúrgico de contracepção em mulheres de estratos socioeconômicos baixos, de áreas rurais ou urbanas marginalizadas e de povos indígenas.”
O Tribunal também apontou que essa política foi implementada através da imposição de metas, quotas de recrutamento de pacientes, e incentivos e sanções aos funcionários da saúde, o que resultou em práticas que ignoraram o devido consentimento informado das mulheres submetidas à referida técnica.
Até sua morte, ele enfrentou uma imposição de reparação civil que ultrapassava 57 milhões de soles peruanos (mais de 85 milhões de reais), resultado de diversas condenações por corrupção e violação de direitos humanos.
Reeleito, porém, com ampla maioria no ano de 1995, tinha como principal rival o ex-secretário-geral das Nações Unidas, Javier Pérez de Cuéllar. Em 2000, Fujimori conseguiu uma reeleição inconstitucional para um segundo mandato consecutivo, através de um processo eleitoral fraudulento, com os órgãos eleitorais sob controle do partido governista.
Seu governo enfrentaria uma crise irreparável logo depois, com a divulgação de um escândalo de corrupção em 2000. Vídeos mostrando o ex-assessor Vladimiro Montesinos subornando empresários e opositores políticos provocaram a perda total de apoio ao governo. Fujimori, então, fugiu para o Japão e renunciou à presidência por fax, e no que foi classificado como uma “reviravolta muito embaraçosa para o país” pelo La República, acabou concorrendo, sem sucesso, ao Senado japonês.
Fuga e condenação
Após não obter sucesso algum na terra natal de seus pais, em 2005, Fujimori tenta se exilar no Chile, mas rapidamente foi preso a pedido das autoridades peruanas, após partir em um carro de luxo à caminho de um hotel da rede Marriott.
Em 2007, foi extraditado para o Peru e enfrentou um julgamento por diversas acusações, incluindo corrupção, violações dos direitos humanos e esterilizações forçadas. Em 2009, foi condenado a 25 anos de prisão pelos massacres de Barrios Altos e La Cantuta, além dos sequestros de um jornalista e um empresário.
Devido à sua saúde debilitada, o ex-ditador passou grande parte de sua sentença em um hospital militar. Apesar da condenação, Fujimori continuou a contar com um núcleo de apoiadores fervorosos, incluindo sua filha, e herdeira do parasitismo fujimorista, Keiko Fujimori. Ela se destacou como uma figura política significativa no Peru, concorrendo à presidência em três ocasiões e defendendo o legado de seu pai.
O legado do fujimorismo
Mesmo após sua queda, o fujimorismo não desapareceu da vida política peruana. Keiko construiu uma carreira sólida no país, sempre orbitando em torno do legado do pai e atraindo uma base de eleitores que vêem Fujimori como um líder que trouxe ordem. No entanto, ela também enfrenta forte resistência por parte daqueles que associam seu nome aos abusos cometidos durante os anos de governo.
Conforme anunciado por Keiko em julho deste ano, seu pai havia planejado concorrer às eleições presidenciais de 2026, quando teria 88 anos. Um mês antes, ele havia se filiado ao partido de direita Força Popular, liderado por Keiko.
A candidatura de Fujimori visava desviar a atenção das acusações de corrupção contra Keiko, como a investigação sobre o caso Odebrecht, que alega que a ex-candidata recebeu dinheiro para suas campanhas. Ela perdeu as eleições de 2011 para Ollanta Humala, de 2016 para Pedro Pablo Kuczynski e de 2021 para Pedro Castillo, e foi acusada de receber verba irregular em todas as ocasiões.
No entanto, segundo o La República, mesmo que Fujimori manifestasse a intenção de se candidatar, sua candidatura seria contestada devido às suas condenações anteriores.
Apesar da morte de seu maior nome na última quarta-feira, o fujimorismo promete seguir influente no Peru, especialmente entre a população rural e mais pobre, que foi amplamente afetada pelos combates contra o Sendero Luminoso.
A influência do fujimorismo também persiste nas periferias urbanas, nas quais vivem muitos imigrantes, incluindo japoneses, como os genitores do ex-ditador. Para tal grupo, o jovem que entregava flores para sustentar a família e estudar agronomia representa um símbolo de ascensão.
Para muitos peruanos, a era Fujimori será lembrada como um período autocrático, repleto de violações de direitos humanos e corrupção endêmica. A prisão de Fujimori não encerrou o debate sobre seu legado, e o fujimorismo continua a dividir o país; enquanto parte o enxerga como combatente do terrorismo, outros o veem como um capítulo sombrio da história peruana.