Pesquisador do efeito das drogas na sociedade, o historiador Henrique Carneiro defende que elas fazem parte da cultura e são essenciais para todas as sociedades. Para ele, a proibição ao consumo da maconha, droga considerada leve, reflete preconceitos históricos no Brasil e no mundo. Henrique é professor de História Moderna na USP e autor de diversos livros sobre o tema. Foi organizador dos livros Álcool e Drogas na História do Brasil, da editora Alameda, e Drogas e Cultura: Novas Perspectivas, da Edufba. Ele falou ao Opera Mundi sobre o plebiscito na Califórnia.
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O que vai mudar na Califórnia se for aprovada a lei?
Hoje em dia, o uso medicinal exige a intermediação de uma instituição médica que dê uma indicação para o usuário. O “pretexto” é medicinal. Mas às vezes o cara não consegue dormir, tem angústia, na verdade o uso é muito mais amplo. Eu prefiro dizer que é lúdico. E a nova Proposição 19 autoriza esse uso também.
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Mas, na prática, faz muita diferença?
Pode trazer uma grande mudança ao alterar o paradigma. Cria uma ruptura de um paradigma que é global e precisa ser rompido. Altera na prática porque vai criar um clima novo em que não vai ter mais a limitação do direito ao uso. Isso pode se espalhar para outros estados americanos e causar uma mudança imediata na relação com o México, um dos casos mais agudos de violência causada pela guerra contra as drogas. E pode gerar uma influência no sentido de se legalizar no México também. Seria, aí sim, uma alternativa viável para começar a combater o problema estrutural do crime organizado.
O senhor é favorável à legalização?
Eu acho que a maconha tinha que ser que ser legalizada para que houvesse o direito do consumidor não depender de circuitos clandestinos e ligados ao crime. Romperia a relação do consumidor com o crime. E isso é importante, sobretudo porque é um produto de jardinagem que pode ser produzido em pequena escala, numa proporção de auto-abastecimento.
A proposição será aprovada? As pesquisas têm apontado crescente oposição…
Mesmo se não for aprovada, vai ser por uma pequena margem. O apoio à legalização nunca foi tão grande, quase metade da população. O debate está sendo feito com grande convicção e vai ficando marcado como uma questão de direito civil, que remete aos aspectos mais importantes da formação das lutas democráticas nos EUA. A ideia é que ser um consumidor de maconha é ter um direito civil, como ser homossexual ou qualquer tipo de opção de vida que tenha relação com questão do próprio corpo. A sociedade aceita que você faça praticamente tudo, inclusive práticas de risco, menos as drogas. Então o plebiscito incorpora à agenda de direitos civis o uso não abusivo de substâncias controladas, que não é garantido em praticamente nenhum país do mundo.
O senhor diz que as drogas fazem parte da cultura de todas as sociedades. Por que então há tanta proibição?
Mais que o simples preconceito, a proibição tem a ver com o interesse político concreto de se reprimir as populações pobres e permitir um pretexto de intervenção social. A grande repressão é contra traficantes e não assaltantes, como se o tráfico fosse a metonímia de todos os crimes. Vide o número de presos, é impressionante como se encarceram as massas. Nos EUA, a grande maioria são negros. Ali como aqui também, há uma pressão enorme no sistema carcerário, que está lotado.
Quando a maconha foi proibida no Brasil?
A primeira menção conhecida que existe na documentação é de 4 de outubro de 1830, que é uma resolução da Câmara municipal do Rio de Janeiro proibindo os escravos do uso do “pito de pango”, como chamavam. A República proclama um código penal em 1890, cujo artigo 159 proíbe substâncias venenosas, mas não há menção específica à maconha. Em 1921 há outro decreto sobre substâncias de qualidade entorpecente. Mas apenas em 1936 a maconha vai ser mencionada explicitamente. É criada uma comissão nacional fiscalizadora de entorpecentes, e acontece uma campanha contra a maconha. A grande criminalização no mundo veio depois do fim da Lei Seca nos EUA. E no Brasil aconteceu de forma simultânea.
Como o Brasil participou desse movimento mundial?
O Brasil de certa forma ajudou a criminalizar a maconha mundialmente a partir de intervenções de médicos e políticos brasileiros, com a estigmatização do uso da maconha, relacionando-a ao ópio na Ásia – o que é improcedente, já que a maconha não tem letalidade e nenhuma síndrome de abstinência. Um exemplo é o médico Rodrigues Dória, que era também presidente da província de Sergipe. No começo do século, Rodrigues Dória diz em um congresso que a ideia de que a maconha é a vingança dos ex-escravos contra seus senhores, que agora escraviza os ex-senhores, como tinha sido o ópio nos EUA. Na verdade toda essa posição é porque era uma droga negra. Tanto que, no início da República, havia uma inspetoria de “entorpecentes, tóxicos e mistificação”, a mesma que combatia a umbanda, o esoterismo e até o espiritismo.
Ou seja, a cultura de uma classe inferior.
Sim, é a exploração da ideia eugenista e racista, de raças superiores, que relaciona a maconha com esses hábitos negros. E isso é muito semelhante ao que aconteceu em outros lugares do mundo, por exemplo, com os árabes nos EUA e na Europa. Mais do que uma droga de pobre, a maconha é uma droga do pobre estrangeiro. E é estigmatizada como sendo uma coisa exótica. No Brasil, Gilberto Freyre, Mário de Andrade e o folclorista Alceu Maynard vão romper com o
racismo e valorizar a papel da maconha na cultura negra.
Hoje o ligação entre racismo e maconha persiste no Brasil?
Sem dúvida. Esse é o fundo da questão. Subsiste um preconceito de ordem social – e falar de ordem social no Brasil é falar em ordem racial – que vê a maconha ligada aos hábitos populares, não à tradição da elite, que consome o álcool sem grande condenação. E hoje é muito pior isso, por causa do sistema que gera. Como a maconha e as drogas em geral se tornaram um circuito de hiperacumulação de capital – é uma das mercadorias mais vendidas no mundo –, seu preço não tem relação com o custo de produção, mas com o custo da proibição. Então tem uma rentabilidade extraordinária, que atrai os meninos do morro, por exemplo, que veem a venda da droga como a única possibilidade de subir na vida. Aí se estigmatiza ainda mais.
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