A Bolívia, país mais pobre da América do Sul, vive um sonho. No sudoeste de seu planalto árido e frio, existe uma maravilha natural conhecida apenas pela beleza inestimável: o Salar do Uyuni. Trata-se do maior deserto de sal do mundo (12 mil quilômetros quadrados), rota obrigatória para turistas que se dispõem a abrir mão do conforto para conhecer um dos lugares mais deslumbrantes do mundo. Mas trata-se também de um lugar que abriga uma enorme quantidade de lítio, que começa a ser explorado e representa a expectativa de um país menos miserável e desigual.
Leia a primeira parte:
Lítio coloca a Bolívia na corrida do ouro branco do século 21
É algo como sentar-se na praia de frente para o mar. Mas em vez da água, vê-se apenas sal, uma imensidão branca de ofuscar a vista e tirar o fôlego. Suas profundidades salinas guardam um terço das reservas mundiais de lítio. Paraíso para os visitantes, é o “inferno de sal” para os indígenas aimarás que ali vivem. Aqui cultiva-se sal, come-se sal, respira-se sal, o dia todo, todos os dias, desde a infância.
O único sustento das famílias locais, pobres e numerosas, é trabalhar na indústria salina da coleta e do comércio. Em um país sem mar, é o recurso sem iodo que tempera os pratos de todos os bolivianos. É mais barato retirar com a pá do que importar.
Além do turismo, um cemitério de trens, lhamas, ovelhas e quinua (cereal de altura antiquíssimo e rico em proteínas), aqui não há nada. Seis meses por ano, desabam do céu raios e rios de água que tornam a extensão de sal um dos lugares mais surreais do mundo.
Há cerca de 40.000 anos, o salar era parte de um enorme lago pré-histórico que, a 3.650 metros de altitude, pouco a pouco secou, deixando espaço para essa paisagem habitada por elegantes flamingos cor-de-rosa e gigantescos cactos com até 12 metros de altura. Estima-se que contenha 10 bilhões de toneladas de sal, das quais menos de 25.000 são extraídas anualmente. Além do lítio, estão presentes quantidades relevantes de potássio, boro e magnésio.
A cooperada de mineradores Comibol está encarregada do projeto-piloto das piscinas de vaporização para extração dos minérios. Quem dirige os trabalhos é o engenheiro Marcelo Castro, atarracado, decidido e incorruptível, com seu inseparável capacete amarelo e óculos escuros, sob um sol inclemente de raios brancos. No local, apenas uma bandeira boliviana, um campo de futebol para os operários, um par de piscinas e 100 trabalhadores empenhados no projeto.
Sem luz elétrica
Diz o engenheiro Castro que o lítio é “a luz da Bolívia”, mas muito do que ele sabe e imagina está apenas no papel e demora a materializar-se. Esta região entre Potosi e Oruro é a mais pobre e isolada da Bolívia. A luz elétrica está bem longe de chegar, assim como os serviços de primeira necessidade. Muitas aldeias que se encontram nos caminhos do salar, como Rio Grande, onde está instalado o projeto-piloto, cresceram em torno do “bem-estar” propiciado pela antiga estrada de ferro Bolívia-Chile, mas hoje estão praticamente desabitadas.
Situação semelhante ocorre no Chaco boliviano, onde pequenas comunidades guaranis viveram dos descartes econômicos da extração do gás durante decênios, sem jamais ver um projeto inclusivo de desenvolvimento.
“Mesmo agora que o gás não está mais nas mãos das multinacionais, mas é gerido pelo Estado”, diz Maria Sosa, líder de uma comunidade guarani, “temos a tubulação do gás passando diante de nossas casas e continuamos a cozinhar com lenha porque não existe um projeto para a distribuição doméstica”.
Os habitantes desta parte do salar se perguntam que efeito terá a indústria do lítio em suas vidas. As poucas pessoas que ainda vivem ali aparecem na porta de suas casas intrigadas pelas presenças de estrangeiros. Para eles, a palavra “lítio” soa distante e estranha. O señor Mario Quispe diz que a ouviu com frequência nos últimos meses, mas não sabe dizer exatamente do que se trata, para que serve e se é comestível.
A señora Rosa Gutierrez, da aldeia de Rio Grande onde se localiza a instalação, sabe apenas que, há algum tempo, “ergueu-se uma grande poeira em torno dessa coisa do lítio e se criou um vaivém de gente com capacete amarelo e botas de borracha, que chegam de jipes e de helicópteros, e muitas vezes falam línguas que não conheço”.
Compreendem que é alguma coisa que não se vê, mas que é importante para o país ou, pelo menos, foi o que lhes explicaram. Esperam apenas que traga coisas boas também para sua pequena comunidade, tornando a vida um pouco menos dura. Esperam que, pelo menos, seja uma porta aberta para o futuro de suas crianças, que vão à escola só em alguns poucos dias do mês, quando chega o professor que vem de longe e que, ainda pequenas, sofrem de catarata por causa do vento, do sol e do sal. Esperam que, se não chegarem a guiar os carros elétricos movidos a lítio, que pelo menos o precioso “alimento” que hoje consomem lhes forneça alimentos de verdade.
Fotos: Fabio Cuttica/Contrasto
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