O presidente Luiz Inácio Lula da Silva dá início nesta terça-feira (09/11) a uma visita de dois dias a Moçambique, a última a um país africano durante seus oito anos de governo. Em Maputo o presidente irá inaugurar uma fábrica de medicamentos para tratamento do HIV, um dos maiores e mais ousados projetos do governo brasileiro na África.
Com uma verba de 13,6 milhões de reais aprovada pelo Congresso nacional para a compra de equipamentos e transferência de tecnologia e um gasto adicional de 600 mil com um estudo de viabilidade econômica, o projeto da fábrica pretende expandir a experiência brasileira de produção de medicamentos contra a Aids.
Amanda Rossi
Fachada do prédio utilizado para abrigar a fábrica de remédios
O projeto representa uma nova área de atuação da cooperação brasileira com os países em desenvolvimento, cujo foco de trabalho é o apoio técnico. “A fábrica foi um terreno novo em que o Brasil entrou, cheio de riscos e de áreas desconhecidas. É um projeto histórico, uma ideia nova e valiosa de cooperação”, afirmou ao Opera Mundi o ministro-conselheiro da Embaixada do Brasil em Maputo, Nei Bitencourt.
Essa será a primeira fábrica pública a produzir medicamentos para o tratamento do HIV na África, o continente mais afetado pelo vírus e onde o acesso ao tratamento é difícil e dependente de doações internacionais. Moçambique é um dos países com maior incidência de HIV do mundo – 13,1% das mulheres adultas e 9,2% dos homens adultos possuem o vírus, totalizando 2,4 milhões de pessoas infectadas. No Brasil, calcula-se que 630 mil pessoas são soropositivas, menos de 1% da população.
Cerca de 80% dos remédios comprados pelo Ministério da Saúde de Moçambique dependem de fundos estrangeiros. Atualmente, grande parte das compras de medicamentos contra a Aids é feita na Índia, que produz genéricos mais baratos. Quando a fábrica pública moçambicana começar a operar, esses fundos também serão responsáveis por adquirir sua produção. Ou seja, a fábrica não trará independência imediata do financiamento internacional.
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Serão produzidos, inicialmente, 21 medicamentos, entre eles cinco antirretrovirais, como são chamados os medicamentos usados para o tratamento da Aids. O registro dos medicamentos foi doado por Farmanguinhos, unidade de fabricação de medicamentos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
A capacidade prevista instalada é de cerca de 250 milhões de comprimidos de antirretrovirais e de 150 milhões de comprimidos de medicamento para atenção básica, como diclofenaco de potássio (anti-inflamatório). Estima-se que a fábrica começará a operar no no final do ano que vem, embalando os medicamentos. A próxima etapa será de produção.
Cooperação
Além do registro dos medicamentos, o Brasil doou duas linhas de produção, uma de antirretrovirais e outra capaz de produzir medicamentos diversos. O maquinário já foi encomendado e deve chegar ao país no primeiro semestre de 2011. Já Moçambique ficou responsável pelo prédio onde será montada a fábrica e pelo custeio e manutenção da Sociedade Moçambicana de Medicamentos, empresa que tocará a fábrica.
A ideia de montar uma fábrica pública de antirretrovirais surgiu em 2003, durante a primeira visita de Lula a Moçambique. Desde então, o projeto passou por vários percalços e atrasou – o início das operações estava previsto para o começo de 2009. Este ano, as operações foram aceleradas para a visita de Lula.
“O projeto atrasou porque é uma iniciativa ambiciosa e, por ser a primeira vez, encontrou desafios novos. Em Moçambique, foi necessário encontrar o formato adequado da unidade, se seria construída do zero ou se seria aproveitado um prédio existente. A fábrica é 100% do governo de Moçambique, essas decisões foram soberanas deles. Todo o esforço é para a fábrica ter vida longa”, disse ao Opera Mundi Camila Olsen, segunda secretária da Embaixada do Brasil em Moçambique.
O sucesso ou fracasso do projeto pode influenciar políticas futuras de ajuda ao desenvolvimento promovidas pelo Brasil no exterior. “Essa é uma prática nova que envolve muito conhecimento novo. Com isso, nós certamente adquirimos uma nova competência, [que poderá ser usada] para envolvermos em novas parceria outros medicamentos que temos em nossa linha de produção”, afirmou Licia de Oliveira, coordenadora do projeto da fábrica pela Fiocruz. Segundo ela, outros projetos deste tipo estão sendo sondados.
Retrato da epidemia
O Brasil fabrica remédios antirretrovirais desde 1993. O acesso
universal e gratuito aos medicamentos é uma política prioritária desde
1996 e calcula-se que cerca de 200 mil pessoas estejam sob tratamento.
Já em Moçambique, o tratamento antirretroviral começou apenas em 2004,
quando seis mil pessoas passaram a receber o medicamento. Hoje, 200 mil
pessoas são tratadas, o que corresponde a menos de um terço das
necessidades e a cerca de 10% do total de soropositivos do país.
Moçambique é completamente dependente da ajuda internacional para
combater a epidemia. Por isso, os programas de saúde pública na área de
HIV são vulneráveis a cortes no financiamento. Em maio deste ano, a
organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) alertou para a redução dos
fundos para tratamento do HIV na África, inclusive em Moçambique. Além
de impedir que novos pacientes fossem tratados, um corte nos fundos
poderia forçar as pessoas que já recebem tratamento a interrompê-lo. Mas
quem começa a tomar o medicamento não pode parar, precisa continuar até
o final da vida.
A moçambicana Florência Tamelle, 33, viu a irmã morrer por causa do HIV.
Depois disso, decidiu se informar sobre a causa da morte da irmã, fez o
teste e descobriu que também tinha o vírus. Hoje, Florência trabalha
para o MSF dando orientação para grávidas soropositivas.
“Se cortam o financiamento [para os medicamentos antirretrovirais] e me
dizem que não tem mais medicamento para mim, eu vou morrer! Vou criar
uma resistência no vírus. Gravíssimo! Isso não pode acontecer. O nosso
país não tem capacidades financeiras para custear as despesas. Estamos a
viver num país que está no caminho do subdesenvolvimento, ainda não é
desenvolvido. Se tivesse uma fábrica de antirretrovirais aqui, seria
muito bom”, afirmou Florência.
Já Alain Kassa, coordenador do MSF em Moçambique, acredita que a fábrica
de antiretrovirais não é viável. “Não sei se os medicamentos
moçambicanos vão ser mais baratos que os indianos, se o preço vai ser
competitivo”.
A fábrica também gerou polêmica no Brasil. Em dezembro de 2009, na
ocasião da aprovação do financiamento no Congresso brasileiro, o projeto
foi criticado por senadores do PSDB, que diziam ser um contra-senso
doar recursos enquanto as necessidades internas de medicamentos
antiretrovirais não estavam superadas.
Além da fábrica de antirretrovirais, o Brasil desenvolve dezenas de
outros projetos em Moçambique, nas áreas de nutrição, desenvolvimento
urbano, esporte, meteorologia e prevenção de calamidades, turismo,
ambiente. Calcula-se que esses projetos vão absorver, entre 2010 e 2013,
cerca de 70 milhões de recursos brasileiros. Moçambique é o maior
beneficiário da cooperação brasileira na África, e o segundo no mundo,
atrás apenas do Haiti.
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