Domingo, 16 de novembro de 2025
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Afastada da família quando criança, a cineasta chilena Macarena Aguiló tem estranhas sensações e poucas lembranças daquele março de 1975. Uma das memórias mais presentes é a de estar sentada no jardim de uma casa, observando meninas mais velhas brincarem, e pensar: “Se elas conseguem subir na árvore, por que não pulam o muro e fogem?”.

Mesmo sem entender o que acontecia, ela sabia que estava presa. “Seus pais nunca vão te buscar”, lembra ter escutado naqueles dias de medo. Sequestrada aos quatro anos de idade pela DINA, polícia secreta do regime militar de Augusto Pinochet (1973-1990), Macarena fica com a voz embargada ao tentar contar a história que reconstruiu ao longo dos anos na tentativa de preencher lacunas dos relatos de familiares que não teve.

O jardim pertencia a um lar dos carabineiros – polícia militar chilena- , último local para onde foi levada. Recentemente, ao participar do evento de reabertura da Villa Grimaldi, um dos principais centros de detenção e tortura do período, Macarena descobriu mais um lugar por onde passou. “Tive uma sensação ruim ao ver aqueles escombros. Uma pessoa se aproximou e disse que se lembrava de mim”.

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Arquivo pessoal



Macarena quando criança

Macarena recebeu o Opera Mundi em sua casa, em Santiago do Chile, onde mora com o filho e com o marido, o cinegrafista Arnaldo Rodríguez. Filha de Hernán Aguiló e Margarita Marchi, membros do MIR, Movimento de Esquerda Revolucionário, Macarena teve sua vida determinada pela militância.

O MIR foi um movimento marxista-leninista que surgiu no Chile, em 1965, inspirado nas transformações revolucionárias em Cuba e em resposta à esquerda chilena após a derrota de Salvador Allende, da Frap (Frente Revolucionária de Ação Popular), para o candidato Democrata Cristão, Eduardo Frei Montalva, nas eleições de 1964. 

O trabalho inicial do partido se dirigia aos camponeses, à comunidade indígena mapuche, aos setores operários e às populações marginalizadas. Anos mais tarde, o MIR ganhou importância ao denunciar as tentativas da direita de impedir que Allende assumisse a presidência, apesar da vitória nas eleições de 1970, e por integrar o GAP (Grupo de Amigos Pessoais) até 1972. 

Com o país dividido entre o apoio e a oposição ao governo, que evidenciava o iminente golpe de estado de 1973, o movimento iniciou um plano estratégico de resistência. Margarita e Hernán sabiam que sua casa estava sendo vigiada pelos militares e abandonaram o local quando souberam do golpe. Consciente do estado de repressão massiva, o casal optou por deixar a filha com a babá. Quando Macarena foi sequestrada, sua mãe já havia sido presa e seu pai, líder sindical e membro do comitê central do MIR, era um dos dirigentes de esquerda mais cobiçados pelo regime de Pinochet.

Macarena foi a isca da DINA para a captura de Hernán, que vivia na clandestinidade. Este, porém, só soube do sequestro da filha quando ela já não estava mais desaparecida. “A pessoa que acolheu meu pai não sabia quem ele era e um dia chegou com uma revista estrangeira na mão, dizendo: “Olha o que estes desgraçados fizeram”, conta Macarena. Sua mãe também tomou conhecimento muito depois, quando Macarena já tinha sido libertada e enviada à Colômbia, o que aconteceu graças a uma campanha internacional organizada por seu avô paterno, que denunciou o sumiço da menina às Nações Unidas. Com a pressão internacional, os militares a liberaram após um mês de sequestro. Um ano depois, Macarena embarcou rumo à França, onde morou por quatro anos com a mãe e foi alfabetizada. Neste período, Margarita começou a perguntar-lhe sobre o que tinha acontecido.

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“Achei importante que ela lembrasse do sucedido e não tratasse o período como um assunto oculto sobre o qual não pudesse falar. Aos poucos, começamos a conversar , mas ela só entendeu a real dimensão do que tinha acontecido muito mais velha”, explica Margarita.

Luciana Taddeo/Opera Mundi



Arnaldo, marido de Macarena, fotografa ela e o filho 

No início dos anos 80, o MIR iniciou a “Operação Retorno”, convocando seus militantes exilados a regressar para combater o regime de Pinochet: “O Chile vivia um processo que abria possibilidades de reorganização dos partidos e era o momento de voltar”, lembra Margarita, que mais uma vez se afastaria da filha. Mas foi aí que se iniciou uma discussão no partido sobre a responsabilidade com os filhos dos militantes: “As mulheres também deveriam atender esta convocatória e o MIR precisava encontrar uma solução, sem que nossos filhos perambulassem de casa em casa”, conta Margarita.

Assim nasceu o “Proyecto Hogares” (Projeto Lares, em português), idealizado por Margarita com companheiras do partido, que após muitas reuniões, estudo sobre métodos de criação em liberdade, conversas com psicólogos e visitas a comunidades conseguiram que o MIR o adotasse como assunto de política oficial. “Queríamos um projeto que formasse revolucionários, sujeitos capazes de resistir e enfrentar um modelo imposto”. Apoiando a ideia, o governo cubano doou um prédio próximo a Havana, que ficou conhecido como “Edifício de los chilenos”.

Cada grupo de três a cinco crianças, de um total de 70, ficava sob a responsabilidade de um “pai social”. Macarena passou a viver uma experiência coletiva ao lado de várias crianças na mesma situação. “Esta experiência me ensinou muitas coisas, como o valor de dividir e não me apegar a bens materiais.”

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Paralelamente, os militantes do MIR foram treinados em uma escola militar, também em Cuba. Antes da partida para o Chile, Margarita escreveu à filha: “Já vamos à nossa terra, para torná-la livre. Quero que estes papeizinhos sejam, entre eu e você, a continuação da nossas conversas. Fecho os olhos e brinco com você. Quero brincar amanhã, 18 de agosto, quando você faz nove anos. Você aprendeu coisas novas? Imagino que sim, porque com muitos amigos aprendemos mais do que sozinhos. Temos que nos esforçar e aprender a escutar. Escreveremos do caminho e vocês também devem escrever cartas com caneta, não lápis, para que sejam fotografadas”. 

Trailer do documentário Edifício de los chilenos, que trata da vida de Macarena em Cuba

A comunicação se manteve basicamente por correspondências fotografadas e enviadas em rolos de filme, sempre com pseudônimos, para impedir qualquer identificação dos remetentes e destinatários. Uma carta escrita por Margarita já em Santiago revela a evolução da situação política chilena: “O último mês nos deu força. Milhares de pessoas saíram às ruas, apesar do amedrontamento que sofrem no dia a dia. As coisas avançam, talvez não tão rápido como eu gostaria. Quero que tudo termine o mais rápido possível, para abraçar uma mulherzinha que eu adoro e que, a cada dia, cresce mais”.

Macarena morou neste edifício de 1980 até 1984, quando Ivan, seu pai social, se mudou para a Espanha. Até o fim da ditadura de Pinochet, quando voltou ao Chile, em 1990, a cineasta passou por lares distintos. O primeiro foi a casa de uma família cubana que já acolhia filhos de um dirigente do MIR. Um ano depois, foi à Argentina, onde Margarita morava clandestinamente com a filha Francisca, recém nascida, desde que a repressão chilena voltou a se intensificar. Foram 12 meses em Buenos Aires até sua mudança a Montevidéu, onde morou na casa de uma tia e deu continuidade aos estudos.

 De volta ao Chile, Macarena se formou em comunicação audiovisual. Após trabalhar como diretora de arte e ambientadora em algumas produções televisivas e cinematográficas, dirigiu Edifício de los chilenos, seu primeiro documentário que trata de sua vida em Cuba. “Precisava realizar este trabalho também para resolver meus próprios conflitos”, diz sobre o filme, vencedor do Festival Internacional de Documentários de Santiago (Fidedocs) de 2010, também considerado o melhor documentário do ano pelo Chilereality e ganhador de prêmios no festival alemão DOK Leipzig e no Festival Internacional de Documentários de Amsterdã (IDFA).

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Macarena Aguiló: memórias de uma menina sequestrada pela ditadura

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