Cerca de 7 mil pessoas de diversas nacionalidades foram resgatadas de trabalhos forçados em Mianmar na quarta-feira (19/02). Entre os libertados, estavam ao menos dois brasileiros que regressaram ao Brasil.
Eles trabalharam durante três meses como reféns das máfias de Mianmar, obrigados a aplicar golpes sobre outros brasileiros.
A libertação dos trabalhadores aprisionados faz parte de uma ampla operação de repressão que a Tailândia está promovendo contra call centers transnacionais fraudulentos que se especializaram em golpes online. Eles estão sediados ao longo da fronteira tailandesa, em Mianmar, Camboja e Laos.
Os três países se tornaram paraísos de negócios criminosos transnacionais que aplicam de forma online golpes que envolvem desde investimentos falsos, jogos de azar ilegais e até em perfis de relacionamento.
Os trabalhadores responsáveis por aplicar os golpes são, por sua vez, recrutados com mentiras e logo aprisionados e obrigados a trabalhar extenuantes jornadas, sujeitos a castigos físicos caso não “cumpram as metas” estabelecidas.
Esquemas fraudulentos
Jeremy Douglas, do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), disse que existe nessa região “um dos maiores grupos de esquemas fraudulentos, possivelmente do mundo”. Esse organismo estima que só os golpes aplicados sobre asiáticos do leste e sudeste produziram perdas financeiras de US$ 18 bilhões a U$ 37 bilhões em 2023.
As pessoas são recrutadas em diversos países e geralmente levadas para esses centros especializados em golpes pela Tailândia que, vendo sua imagem prejudicada por isso, começou uma ampla ação de combate a esses crimes.
As ações da Tailândia se intensificaram após uma ampla repercussão que teve na mídia o sequestro em seu território de um jovem ator chinês que chegou ao país acreditando ter sido convidado para uma suposta seleção de elenco.
Depois disso, este mês, as autoridades tailandesas cortaram o fornecimento de internet, eletricidade e combustível para cinco áreas de Mianmar onde se concentram esses grupos criminosos.
A ONU calcula que ao menos 120 mil pessoas em Myanmar e outras 100 mil no Camboja podem estar sendo mantidas em condições análogas à escravidão, obrigadas a aplicar todo tipo de golpes online pelas máfias cibernéticas.

Fábricas de golpes online mantém milhares de trabalhadores em situação análoga à escravidão
Brasileiros entre os resgatados
Phelipe Ferreira foi um dos dos brasileiros “contratados” pela KK Park, uma das empresas golpistas de Mianmar. À reportagem do G1 ele disse que tinham um roteiro a seguir, com o que contar, perguntar e o que pedir às vítimas em cada ligação para ir conquistando a confiança progressivamente.
“No quarto dia, a gente pedia uma ajuda, falava que trabalhava numa plataforma online chamada Wish e que, se ele ajudasse, ganharia comissão de 30 dólares”, contou Ferreira. Como a comissão era paga, a vítima ficava mais confiada e mais propensa a realizar transferências.
Segundo seu relato, às vezes trabalhava 22 horas por dia, monitorado a cada dez minutos e proibidos de qualquer contato com alguém da mesma nacionalidade. “Quem não cumprisse a meta, recebia eletrochoque, espancamento ou era obrigado a fazer 100, 300, 500 agachamentos”. Ele lembra que um homem que tentou fugir foi espancado com choques e depois amarrado a uma cama de ferro.
Reportagem do Guardian também traz relatos de mais resgatados que explicam como foram eletrocutados, espancados e confinados em um quarto escuro por não atingirem as metas estabelecidas pela empresa fraudulenta.
Luxuosa cidade de Shwe Kokko
Apesar do medo, Phelipe acabou conseguindo fugir, junto com outro brasileiro. Ambos foram logo detidos pela polícia e enviados à Tailândia, onde a embaixada brasileira os ajudou a voltar ao Brasil.
Seu companheiro de fuga chegou a Mianmar aceitando uma falsa oferta para trabalhar em uma empresa de tecnologia na Tailândia, perto da fronteira.
Ferreira disse ainda que os brasileiros são mais difíceis de cair no golpe do que russos, ucranianos e hispano-americanos. Ele lembra de uma mulher caribenha que caiu na conversa de um chinês e tomou um empréstimo de 350 mil euros para comprar uma casa porque ele prometeu que iria viver com ela.
Segundo o jornal Bangkok, cerca de 200 cidadãos chineses devem ser repatriados nessa quinta-feira (20/02). Outras 260 pessoas de 20 nacionalidades diferentes, que trabalhavam nessas empresas fraudulentas, foram deportadas de Mianmar na semana passada, segundo comunicado do Exército tailandês.
O crescimento das máfias cibernéticas em Mianmar foi tanto que, em oito anos, fez brotar a luxuosa cidade de Shwe Kokko, onde antes só havia umas poucas e miseráveis edificações de cimento. Com uma economia devastada por anos de guerra civil e um golpe militar, o país foi terreno livre para a implantação das máfias.
A cidade, que começou a ser construída em 2017 , foi obra da ambição de She Zhijiang, um empresário do interior da China que passou anos procurado por golpes em seu país e que hoje está preso lá por criar uma loteria ilegal.