No princípio desta década, Fidel Castro se encontrou numa recepção com um diplomata norte-americano em Cuba e lhe perguntou o que fazia. Vicky Hudleston respondeu que estava “encarregado dos assuntos cubanos”. “Engraçado, pensei que era eu quem tinha essa responsabilidade”, comentou, entre risos, o então presidente cubano.
Não há melhor forma de descrever o relacionamento atual entre os dois países que recordar este episódio, depois que Barack Obama chegou à Casa Branca e as coisas mudaram. A filosofia agora em Washington é que os cubanos são donos de seu destino e em Havana, apesar de reformado, Fidel continua à frente dos “assuntos cubanos”.
Não é um relacionamento paradisíaco. O embargo econômico continua existindo e os cubanos ainda olham para Obama com desconfiança. Mas é o único relacionamento possível, num ambiente muito mais desanuviado que durante os tempos em que os republicanos ocupavam a mansão presidencial.
Mas o mais curioso é que essa inflexão nasceu onde menos se esperava, no seio do exílio cubano em Miami, e não nos gabinetes de Washington ou Havana.
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Obama elimina restrições, mas mantém embargo
Os analistas começaram a perceber que algo ia mudar quando, em agosto de 2007, Obama veio ao coração de Miami e, em Little Havana, disse a uns 2.000 exilados que levantaria as restrições que os impediam de viajar livremente à ilha e enviar dinheiro aos familiares. Acrescentou que estava disposto a conversar com o governo de Fidel Castro e que o centro de gravidade de sua política se limitaria a uma palavra: liberdade. Mas liberdade para todos, inclusive os presos políticos e os exilados proibidos de abraçar seus parentes.
Foi um discurso histórico. Até então, Miami era apenas uma plataforma preferida de campanha eleitoral, onde todos os candidatos, republicanos e democratas, prometiam algo que nunca teriam de cumprir porque era a mesma política de sempre: ser duro com o governo da ilha.
Obama foi o primeiro que chegou com um discurso diferente e cativou de imediato os cubano-americanos. A tal ponto que, de imediato, os setores extremistas não hesitaram em acusá-lo de “comunista”. Obama falou de improviso, mas para os analistas informados, houve um pormenor que não escapou. A política que estava sendo anunciada não constituía propriamente uma novidade e tinha um nome.
“Lembro de que escutando Obama nesse dia, pensei que era o mesmo discurso de Joe Garcia. Quase palavra por palavra, seu pensamento estava ali, nas palavras do candidato presidencial com mais possibilidades de chegar à Casa Branca. Alucinante”, comentou ao Opera Mundi Phil Peters, vice-presidente do Lexington Institute.
Joe Garcia é, possivelmente, o cubano-americano mais polêmico de Miami. Nascido na cidade, filho de exilados, fala espanhol ao estilo cubano melhor que muitos nascidos em Havana. Não sabe sequer qual é o cheiro de Cuba, mas o futuro da ilha é para ele uma obsessão.
Há 10 anos, o jovem advogado anda pela cidade da Flórida semeando ódios e paixões. “Para mim, não foi muito difícil perceber que a velha política em relação a Cuba não funciona. E aquilo que nunca funcionou deve ser mudado. Senão o mundo não evolui”, disse ao Opera Mundi.
Ódio
Tudo começou em 2001, quando Garcia foi nomeado diretor executivo da mais poderosa organização anticastrista da cidade, a Fundação Nacional Cubano-americana, e reparou que não teria êxito se não desfizesse um nó gordiano. “O ódio não tem razão de ser. Mas também não podemos obrigar os jovens a odiar se a maior parte da população nasceu depois de Castro chegar ao poder e não conhece nada mais que seu regime”.
Um pensamento que rapidamente fez crescer ressentimentos entre os diretores mais radicais da entidade, que acabou se dividindo. A fratura ficou exposta pela forma como enfrentaram a crise Elián González, entregue aos tios avôs depois que a mãe morreu tentando levá-lo para Miami. O pai, em Cuba, reclamou sua devolução e detonou a maior crise do exílio cubano. Uns acreditavam que o menino devia ser devolvido ao pai e outros achavam que seu futuro estava em Miami porque a mãe quis trazê-lo para cá.
Em menos de seis meses, depois que Elián voltou a Cuba, uns 20% dos diretores da fundação bateram a porta e criaram uma nova entidade. Livre de obstáculos, Garcia começou então a tratar de convencer os exilados de que mais do que um diálogo com Washington, era preciso uma grande conversa entre cubanos, dos dois lados do estreito da Flórida. “Era a única forma de mudar uma política errada. Com a participação de todos”.
Foi assim que milhares de ativistas do Partido Democrata, do qual Garcia foi presidente em Miami, começaram a reunir-se em casas particulares em pequenos grupos e discutir como mudar a situação. Foi um trabalho de formiga. Iam literalmente batendo de porta em porta, quase clandestinamente, porque os extremistas os perseguiam.
Uma das primeiras coisas que os ativistas descobriram foi que havia uma geração de jovens cubanos que não tinham uma animosidade particular para com o governo cubano, que vieram para Miami apenas com o desejo de levar uma vida melhor e não acreditavam na separação familiar.
Gente como Marcos Fernández, mecânico de automóveis que veio para a Flórida para ajudar a família em Cuba. Todos os meses, manda o que pode, quase sempre uns 100 dólares. “Não posso votar, não sou cidadão. Mas quando Obama disse que íamos poder viajar para Cuba quando quiséssemos, não tive dúvidas. Este é o nosso homem”.
Mas também perceberam que havia uma geração intermediária de exilados, ou filhos de exilados, que estavam cansados da política de sempre e queriam uma mudança.
Democracia, pero no mucho
Um deles é Giancarlo Sopo, que acabou fazendo parte da campanha de Obama. Seu passado é um resumo da história do exílio cubano. Nasceu nos Estados Unidos e o pai é considerado pelos exilados radicais como um heroi da luta contra Fidel Castro. O jovem Sopo percebeu que era necessário mudar o estado de coisas no dia em que o pai se separou da mãe e acabou falecendo na mais desesperada solidão por não ver realizado seu ideal, a democracia em Cuba.
À medida que se foi envolvendo politicamente, Sopo tropeçou também numa realidade que o confundiu. Muitos exilados dizem lutar pela democracia em Cuba, mas não a exercem em Miami.
“Se uma pessoa aqui se desvia minimamente da linha tradicional de anticastrismo, é logo acusada pelas emissoras de rádio de ser comunista”, afirmou. Por isso, logo que viu Obama no horizonte, não teve dúvidas, era o homem a seguir. “Acho que tive razão. Em apenas cinco meses na presidência, Obama já mudou totalmente o rosto da política para Cuba. Cumpriu o que queríamos, as pessoas são mais felizes”.
Mas ainda têm medo. Uma das maiores dificuldades desta reportagem foi que os exilados consultados aceitassem ser identificados ou fotografados.
“Tínhamos de amarrar o barco primeiro. Porque a maioria das pessoas que tem um interesse real na mudança não participa de convenções políticas. E quando uma pessoa tem interesse real num assunto, acaba por ser o moderador da ação desse assunto”, disse Garcia, ao explicar a campanha de mobilização das bases.
Desde o início, ficou claro que “uma coisa é a retórica de agressão e outra, a diplomacia. Tínhamos de desenhar uma política que colocasse a bola do lado cubano. E mantê-la aí para sempre”, acrescentou. Quando ouviu Obama pronunciar-se por uma melhor relação com o mundo, Garcia concluiu que o momento tinha chegado.
A partir de então, foi uma questão de tempo. Garcia transformou-se num passageiro frequente das linhas aéreas entre Miami, Washington e Chicago, sede de Obama. Criou o National Democratic Network. Transformou a entidade na principal patrocinadora da nova visão dos Estados Unidos em relação a Cuba. Bateu em todas as portas até que conseguiu estabelecer uma relação pessoal com Obama e Dan Restrepo, seu assessor latino-americano.
“A grande pergunta sempre foi como passar este fio pela agulha. Estávamos vivendo uma situação em que nesta comunidade, só os republicanos estavam sendo beneficiados por Bush. Tinham o poder econômico e eram mais fortes”, afirmou Garcia.
A “realidade política do exílio”
Mas também tinham um problema: não podiam ver a família em Cuba. Aceitavam viver num estado de ilusão permanente, de promessa em promessa de que Cuba seria livre, mas nada sucedia. Calavam por disciplina ou medo. “Não podiam ir a Cuba, mas para eles Bush é o maior êxito cubano desde que Cristóvão Colombo chegou à América”, acrescentou Garcia, entre sorrisos.
Quando Garcia lhes explicou o dilema, o pessoal de campanha de Obama decidiu que uma vez sendo ele presidente, Washington se abriria a Havana, levantaria restrições e daria a todos os exilados a possibilidade de poderem fazer aquilo que todo imigrante faz: visitar sua terra.
“Não penso que isso tudo tenha sido um plano. É mais um reconhecimento da realidade política do exílio. Se vamos ao pormenor, reparamos que os democratas nunca colocaram seus objetivos em primeiro lugar, e sim trabalharam com as circunstâncias em que viviam”, comentou ao Opera Mundi o escritor cubano Norberto Fuentes, em rara entrevista.
Direto ao ponto
Segundo Fuentes, a política de Obama pegou porque desde o início, ficou claro que era empurrada pela fundação. “Ele soube o que fazer, veio bater à porta da maior organização do exílio, já depurada de elementos radicais. Discursou perante os diretores. Não perdeu tempo com pequenas organizações, todas controladas pelos republicanos, que, de qualquer modo, não iam aceitar seu discurso. Pelo menos publicamente”.
“Obama foi também o candidato ideal dos cubano-americanos porque depois de 50 anos de fracassos, o velho exílio não tem qualquer capacidade de metamorfose ante Fidel Castro, mas Obama sim”, acrescentou Fuentes. “Aqui não há margem para dúvidas. Em Washington, prevaleceu a proposta de Joe Garcia. Ele entendeu a política tal como ela é, ou seja, que Fidel Castro é ainda um ator deste espetáculo, só é preciso saber contornar”.
Alem disso, “[Garcia] é um dos poucos políticos do exílio que não querem ser presidentes de Cuba. Foi o Gorbachev da fundação cubano-americana, porque conseguiu convencer [seus diretores] que a mudança tinha de vir da sociedade civil cubana, quando eles levavam décadas exigindo que viesse de Castro primeiro”, sublinhou o escritor.
Cinco meses depois da chegada de Obama à Casa Branca, Garcia, diante do café da manhã, reflete sobre como conseguiu estremecer uma política de 50 anos até seus alicerces. “Isso tudo nasce de duas realidades. Nunca seria possível se os cubanos não estivéssemos em lugares-chave da política nacional, e na Flórida somos importantes atores políticos”.
Mas também, diz ele, “o tempo é nosso melhor aliado. Contra o tempo, não se pode conspirar”, afirma. “Os velhinhos aqui lutam contra o mesmo monstro que lutam os velhinhos na ilha, que é o passar do tempo”. Os “velhinhos” são a primeira geração de exilados, normalmente relacionados com o setor mais radical.
“Por isso há que investir na sociedade civil cubana. E esta política está aqui para isso”, acrescenta.
Leia a segunda parte:
Liberdade de viajar provoca discussões acirradas
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