A cena ocorre no pequeno bar Sol e Sombra, na cidade de Uruapan, Michoacán, um estado da costa pacífica mexicana. No dia 6 de setembro de 2006, 20 homens mascarados surgem em meio aos clientes, disparam tiros no ar e lançam na pista de dança cinco cabeças de homens mortos. Antes de sair, deixam uma mensagem escrita em uma pequena carta de cor verde: “La Familia não mata por dinheiro. Não mata mulheres. Não mata pessoas inocentes. Apenas aqueles que merecem morrer. Isso é justiça divina”.
Até então, La Família ainda era um grupo ligado ao cartel do Golfo, uma das principais gangues de traficantes de drogas do país. Com o episódio no bar, virou “celebridade”. Só em 2006, decapitou 17 pessoas. Nos anos seguintes, as autoridades perderam a contagem. Tortura, decapitações: La Familia eleva o nível de violência a um patamar raramente atingido na história do México.
Também impressiona a capacidade de divulgar as “proezas” no território. Como Los Zetas, um cartel liderado por desertores do Exército mexicano, La Familia manipula a mídia convencional, cavando espaço na televisão e publicando anúncios em jornais e sites.
Detalhe de uma das seis pessoas assassinadas no último dia 24 de julho
na estrada que liga Guadalajara a Nogales, no estado de Jalisco. Um
grupo armado abriu fogo contra clientes de restaurante – Tonatiuh
Figueroa/EFE
Zelo religioso
O discurso justiceiro apresenta, paradoxalmente, os membros da milícia como defensores das crianças e dos inocentes contra o tráfico de droga. Rapidamente, porém, o trabalho de “proteção” para comércios e comunidades virou extorsão acompanhada de ameaças de morte. Em pouco tempo, La Familia incorporou todas as atividades dos cartéis tradicionais: sequestro, extorsão, serviço de pistoleiros, tráfico de cocaína, maconha e drogas sintéticas.
Os 4 mil integrantes viajam frequentemente carregando uma Bíblia. “O zelo religioso de La Familia é refletido na preferência pelas execuções, em vez de negociações”, explica George Grayson, do Instituto de Pesquisa Sobre Política Externa (FPRI na sigla em inglês), baseado na Filadélfia, Estados Unidos.
Destacada pela mídia, esta característica não é exclusividade do La Familia, diz Luis Navarro, chefe da seção “Opinião” do diário mexicano La Jornada. “Todos os traficantes são profundamente religiosos. Eles estão sempre à beira da morte, em uma permanente transgressão, precisam de um passaporte para o além para aguentar esta vida. Eles pagam milhões para a reparação de igrejas e a construção de novas capelas”, afirma.
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Na semana passada, o grupo demonstrou também a sua poderosa capacidade de mobilização. Poucas horas após a detenção de um dos seus dirigentes, Arnoldo Rueda, La Familia lançou uma ofensiva, matando cerca de vinte policias federais. Os corpos de doze deles foram encontrados empilhados à beira da estrada.
Logo depois, Servando Gómez Martinez, ou “La Tuta”, identificado pelas autoridades como o número 3 do cartel, falou ao vivo em uma televisão local de Michoacán e ofereceu ao governo um “pacto nacional”, que rechaçou a proposta e enviou de mais mil soldados, veículos blindados e helicópteros de guerra para reforçar a batalha contra o tráfico no estado.
Soldados marcham no quartel da cidade de Morelia, no estado de Michoacán – Mario Guzmán/EFE (20/07/2009)
Medo de seqüestro
Desde sua eleição em 2006, o presidente Felipe Calderón fez da guerra contra os cartéis de droga uma cruzada pessoal. Alguns dias após sua posse, ele anunciou a mobilização de mais 45 mil membros das forças de segurança no país, começando com Michoacán, seu estado natal.
A estratégia deu uma nova legitimidade ao presidente. Sua ação contra o narcotráfico tem o respaldo da maioria da população. Um informe do instituto de pesquisa Consulta Mitofsky, publicado em dia 17 de junho a pedido da ONG México Unido Contra a Delinqüência, revela que 80% das pessoas apóiam as operações militares, enquanto 48% achavam estas operações bem sucedidas.
Mas esta política não consegue apaziguar os temores em relação à violência. O mesmo informe mostra que 73% dos pesquisados consideram que a segurança não melhorou, ou até piorou durante o último ano. A mesma proporção dizia ter medo de ser sequestrada.
De fato, com a chamada “Guerra contra as drogas”, o numero de mortos não diminui. Pelo contrário. As disputas entre os gangues, acirradas pela intervenção do Exército, provocaram 2.275 assassinatos em 2007. Em 2008, o número atingiu 5.630, e o ritmo parece ainda mais acelerado. Em meados de junho, o jornal El Universal contabilizava já 3.050 pessoas assassinadas desde o começo do ano.
Jovens sem futuro
“Não sei quem aconselhou Calderón, mas ele decidiu derrotar os cartéis no campo militar, sem acompanhar o esforço bélico com um plano de desenvolvimento para as chamadas zonas libertadas”, afirma Alejandro Sanchez do Instituto Conselho para Assuntos do Hemisfério (COHA, na sigla em inglês), de Washington.
Nestas terras rurais economicamente devastadas desde a assinatura do tratado de livre comércio com os Estados Unidos, que tem facilitado a entrada de produtos agrícolas subsidiados do país vizinho, os jovens estão sem perspectiva de emprego. Eles têm de escolher entre imigrar ilegalmente para os Estados Unidos, ou fazer parte de um cartel de drogas.
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Para Alejandro Sanchez, a luta militar enfrenta um grande obstáculo, que é a quantidade de gangues rivais disputando o mercado da droga. “Cada vez que o governo acha que derrotou um cartel, outro grupo preenche rapidamente o vácuo”, explica. A atenção que mídia deu aos crimes do La Familia durante os últimos meses não significa que os outros grupos como o cartel de Sinaloa, de Joaquín Guzmán, e aquele dos irmãos Beltran Leyva, estejam desativados.
Propinas generosas
O narcotráfico conseguiu corromper todos os níveis de governo: federal,estadual e municipal. Edgardo Buscaglia, assessor das Nações Unidas no México, calcula que “entre 50 e 60% das prefeituras estão controladas ou ‘feudalizadas’ pelos cartéis”.
Também infiltraram de forma maciça o Exército e a polícia. De acordo com relatórios de serviços de inteligência do governo publicados pelo diário La Jornada, 62% dos policiais seriam controlados pelos cartéis. O mesmo relatório revela que 57% das armas distribuídas aos policiais foram utilizadas em atividades ilegais. Isso não é uma novidade. O grupo Los Zetas, que é considerado um dos mais violentos do México, foi fundado por antigos membros da tropa de elite anti-droga do Exército.
As propinas podem ser generosas. Recentemente, o Ministério Público acusou Javier Herrera Valles, um comandante da Polícia Federal, de cobrar 35 mil dólares a cada duas semanas para proteger um grupo criminoso no Estado de Tamaulipas. Uma mixaria comparada aos 25 bilhões de dólares que gera o tráfico de drogas anualmente no México.
Campanha de limpeza
Para John Gibler, que acabou de publicar o livro Mexico unconquered (O México não conquistado), a corrupção de todas as camadas do Estado pelo narcotráfico alimenta a violência. Em entrevista concedida ao site Narconews, Gibler explica: “Essa penetração faz com que a guerra entre os vários cartéis provoque impactos dentro do Estado. Os cartéis que estão lutando na rua também estão lutando dentro da estrutura do Estado. Daí você tem o constante vai-e-vem que leva aos assassinatos de policiais, militares, civis, e membros das diferentes agências anti-droga”.
O governo prometeu uma “campanha de limpeza” entre os funcionários. A operação levou à detenção de dez prefeitos, um juiz e outros 16 funcionários no Estado de Michoacán. Acusado de estar associado a La Familia, o irmão do governador, Julio Cesar Godoy, está foragido.
“É uma limpeza muito branda, que não atingiu ainda os níveis mais elevados de governo”, critica Alejandro Sanchez. Ele lembra que o governo se recusa a investigar as “narco-finanças” do país, congelando os ativos nos bancos. “No final das contas o que importa para os donos do trafico é o dinheiro”, completa.
Assista à reportagem da televisão El Universal
Sem resultado satisfatório, essa política começou a suscitar dúvidas por parte da Casa Branca. Apesar de se declarar a favor de um programa de ajuda militar, o “Plano Merida” – similar ao “Plano Colômbia” introduzido no começo da atual década – o governo Obama enfrenta duras críticas. Por um lado, os governadores dos estados fronteiriços ao México estão se queixando da violência que está desbordando no território americano. Por outro lado, entidades de direitos humanos denunciam as violações crescentes por parte do Exército e da polícia.
Além de soldados e narcotraficantes, a onda de assassinatos atingiu líderes de movimentos sociais e sindicalistas. A situação se agravou também para a imprensa. De acordo com a Fundação Manuel Buendía – nome de um jornalista mexicano executado em 1984 – 17 jornalistas foram assassinados desde o começo de 2008, tornando o México um dos países mais perigosos para quem exerce a profissão.
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