Neonazistas que invadiram Lincoln Heights são ‘incentivados’ pelo governo Trump, defende vereador
A Opera Mundi, Daronce Daniels explicou onda de atos extremistas na cidade em que população se mobilizou pela própria segurança diante de ‘cumplicidade’ das autoridades com criminosos
Com um caminhão, em 7 de fevereiro, um grupo chegou e se posicionou em um viaduto da rodovia que dá acesso à cidade de Lincoln Heights, em Ohio, nos Estados Unidos. Do local, seus integrantes bradaram insultos racistas e agitaram bandeiras com suásticas vermelhas. Duas semanas depois, outro grupo espalhou panfletos racistas da Ku Klux Klan pelo município.
Diversos episódios semelhantes se seguiram nos dias posteriores, levando os moradores da localidade a se organizarem em grupos armados de autodefesa contra os neonazistas – e também por considerarem que as autoridades do Estado de Ohio vêm sendo negligentes diante do caso.
Opera Mundi conversou com Daronce Daniels, vereador de Lincoln Heights, para entender a escala de extremismo na cidade, que tem um histórico de luta pela igualdade racial. Na análise do representante, indivíduos como os que invadiram sua comunidade se sentem incentivados pelo governo de Donald Trump.
“O presidente Trump demonstrou um incentivo extremo para indivíduos como esses quando invadem o Capitólio e ainda recebem perdão por isso. Esses são os mesmos indivíduos que se sentem encorajados a agir com ódio descontrolado e sem freios”, declarou.
Daniels refere-se ao perdão presidencial que o mandatário republicano concedeu aos condenados por invadir a sede do Poder Legislativo do país em 6 de janeiro de 2021. Na ocasião, seus apoiadores tomaram o prédio em rejeição à derrota de Trump para o democrata Joe Biden nas eleições de 2020.
O vereador de Lincoln Heights afirma que o avanço de neonazistas sobre a cidade “não é uma questão de republicanos ou democratas”, já que mesmo durante o governo Biden manifestações criminosas como essas estavam acontecendo.
Contudo, ver “Elon Musk [aliado de Trump e chefe do Departamento de Eficiência Governamental] fazer um gesto associado a neonazistas” ajuda a entender porque “algumas coisas acontecem agora”.
Daniels conta que como um homem negro nos Estados Unidos está “acostumado” com o governo não estar ao seu lado “de muitas maneiras”. “Isso não é novidade, o que é algo novo e único é o quão enraizados e empoderados alguns desses grupos de ódio estão se sentindo”.
Heights Movement
O município com cerca de três mil habitantes virou notícia na imprensa norte-americana e brasileira após a invasão dos neonazistas. Porém, não foram as manifestações extremistas que chamaram atenção, mas sim quando a população passou a fazer a própria segurança da comunidade diante da inação policial e das autoridades.
“Se esses grupos se sentem ‘empoderados’ para agir com seus discursos de ódio, a comunidade de Lincoln Heights precisa garantir preparo, foco e senso de urgência para lidar com essas questões. E isso está acontecendo agora”, conta Daniels.
Alguns habitantes de Lincoln Heights passaram a patrulhar as estradas que levam à cidade, abordando e interrogando qualquer pessoa que se aproxime da região. Toda a ação faz parte de um movimento chamado Heights Movement (Movimento Heights), estabelecido em 2017, mesmo ano em que Daniels passou a fazer parte da Câmara da cidade. Segundo ele, essa é a organização que tem resolvido todos os problemas na cidade.
Porém, Daniels afirma que esse movimento de segurança da população foi “sensacionalizado”, uma vez que são apenas indivíduos que não se sentiram seguros com a ação da polícia e decidiram “tomar as rédeas e proteger a comunidade”.
“Eles se mantêm vigilantes desde a chegada dos neonazistas, estão organizados e mobilizados de várias maneiras, e garantem que nenhuma atividade suspeita ocorra dentro da comunidade”.
“Se algo acontecer, eles chamam as autoridades”, ressalta o vereador, que completa informando que há habitantes que começaram a fazer boletins informativos e relações públicas, garantindo que as pessoas da comunidade estejam cientes do que está acontecendo.
“Há ainda aqueles que estão preparando refeições para os residentes, garantindo que todos tenham algo para comer. Então, o que aconteceu após o dia 7 de fevereiro foi uma unificação e organização da comunidade como não se via há muito tempo”, relata.
De acordo com o vereador, a cidade tomou a posição de se defender porque sabe que “ninguém irá lhes salvar” então começaram a avaliar como usar suas “habilidades e conhecimentos para garantir que a comunidade esteja segura”.
Daniels conta que há cerca de 100 pessoas mobilizadas em diferentes funções para prestar serviços à população de Lincoln Heights. Para ele, essa ação não é um trabalho de segurança, mas sim visando o bem-estar da comunidade local.
“Você vive na comunidade. Você anda pela comunidade. Portanto, as pessoas só estão fazendo o que normalmente fazem. É apenas com mais comunicação, se houver algo que pareça fora do lugar, eles informam a todos”.
Opera Mundi questionou se o Heights Movement é apoiado pela toda a população local e Daniels afirmou que os moradores adotam placas em seus quintais dizendo que apoiam “o programa de segurança e vigilância, e os moradores que estão cuidando deles”.
Americanos se protegendo da ‘maneira mais americana possível’
O que chamou a atenção no movimento da comunidade de Lincoln Heights foi o fato de que algumas dessas pessoas pegaram em armas para fazer isso.
“Ohio é um estado que permite o porte de arma de fogo. E sim, algumas dessas pessoas estão usando essa ferramenta. Mas isso é uma resposta, mais uma vez, ao fato de que essas pessoas não se sentem seguras. Nossos xerifes e nosso departamento de polícia deixaram bem claro que se os neonazistas aparecerem mais uma vez, eles permitirão que isso ocorra novamente”, afirma.
Daniels defende que os habitantes de Lincoln Heights envolvidos na segurança da cidade “não estão tentando bancar super-heróis”.
“Essas pessoas são pais, mães, indivíduos que têm empregos, mas estão com medo de que a polícia não os proteja de grupos de ódio em sua comunidade”, acrescentou.

Na opinião do vereador Danies, movimento de segurança da população de Lincoln Heights foi “sensacionalizado”
“As pessoas estão vendo homens negros em pé, do lado de fora de sua comunidade, portando uma arma. Não entendo por que isso deixa tanta gente nervosa ou com medo. Essa é uma das coisas mais americanas que podem acontecer. São indivíduos dos Estados Unidos protegendo sua terra, sua família, da maneira mais americana possível”, defende.
De todo modo, afirma que se as pessoas temem um “americano” defendendo o que lhe pertence “isso é problema delas”. “Lincoln Heights é um terreno sagrado. É mais do que apenas uma comunidade, é uma ideia, e estamos dispostos a fazer muito para protegê-la”, concluiu o vereador da de Lincoln Heights.
Vale destacar o contexto histórico da localidade: Lincoln Heights surgiu como uma comunidade negra autônoma, a mais antiga ao norte da Linha Mason-Dixon, que historicamente separava os estados escravistas do sul dos estados livres do norte dos Estados Unidos.
Uma cidade cúmplice dos extremistas
Essa movimentação da comunidade de Lincoln Heights se fez necessária quando a população percebeu que a polícia local não apenas estava sendo negligente, mas colaborando com os neonazistas.
Após a chegada dos grupos, Charmaine McGuffey, xerife do Condado de Hamilton, que abrange a região onde Lincoln Heights está localizada, condenou os neonazistas, chamando-os de “covardes”, e prometeu reforçar as patrulhas policiais na cidade, além de aprofundar as investigações sobre a atuação dos grupos extremistas na região.
Contudo, as autoridades locais defenderam que os grupos neonazistas estavam “exercendo sua liberdade de expressão protegida por lei” e apenas ordenaram que se retirassem da região para “evitar a escalada da violência”.
O vereador Daniels denuncia que membros da polícia local, pertencentes à cidade vizinha de Evandale, “foram definitivamente vistos conversando com os neonazistas antes de permitirem sua entrada em Lincoln Heights”.
“Há filmagens de suas câmeras que vão nos uniformes que evidenciam não apenas sua ajuda aos neonazistas, mas também indicam que os policiais orientaram os indivíduos a voltarem a Evandale e pegarem seus carros de volta. Também falaram para eles trocarem de roupa [após o ato]. Chamamos isso de adulteração de provas”, conta.
Além de colaborar com os extremistas, as autoridades de segurança também atuaram para impedir que os residentes da cidade “fizessem o trabalho que a polícia deveria ter feito”.
“Não foi a violência típica que a polícia tem demonstrado contra os negros nos Estados Unidos, portanto, não houve cães, spray e ninguém levou um tiro. Mas eles definitivamente criaram uma barreira e tentaram impor força corporal para deter alguns residentes”, relata.
Questionado por Opera Mundi se os policiais foram negligentes, Daniels afirmou: “negligência é uma palavra, mas também cumplicidade e auxílio aos neonazistas”.
Diante da cooperação das autoridades e polícia local com os grupos neonazistas, o Heights Movement não apenas tem se esforçado para manter a segurança da própria cidade, mas iniciou, em 28 de fevereiro, um boicote contra a cidade de Evandale, comunidade a leste de Lincoln Heights responsável pelos policiais cúmplices.
“Em primeiro lugar, Evendale só existe devido à anexação de terras que deveriam pertencer a Lincoln Heights. Suas terras eram nossas por direito. Contudo, acabaram se tornando a General Eletric, uma divisão do conglomerado multinacional que atua no setor de energia”, explica.
Segundo Daniels, a General Electric foi a base econômica de Evandale, o que permitiu um desenvolvimento para a cidade que não era possível para Lincoln Heights.
“Evandale não existe sem a discrminação racial. Portanto, do ponto de vista racial e histórico, Evandale tem vivido verdadeiramente por meio da anexação, aproveitamento e alavancagem de propriedades e terras do povo de Lincoln Heights por mais de 75 anos”, explica Daniels sobre um conflito histórico entre as duas regiões.
Para além disso, a cidade está responsável pela investigação dos grupos neonazistas. “As pessoas que estão investigando os neonazistas são seus amigos!” insta.
Além de serem responsáveis pela investigação, as autoridades de Evandale não envolveram os representantes políticos ou da sociedade de Lincoln Heights, como Daniels, no processo.
Por isso Lincoln Heights está em “boicote total” a Evandale. “Estamos pedindo a todos os residentes, à nossa comunidade e a todos os indivíduos com ideias semelhantes que boicotem Evendale”.
Entre as exigências dos moradores está a “investigação completa e transparente” dos atos extremistas, com a divulgação de todas as filmagens não editadas da polícia de Evendale sobre o ato neonazista de 7 de fevereiro para que sejam analisadas de forma independente.
A comunidade também demanda que “ todos os policiais que ajudaram ou possibilitaram os manifestantes neonazistas” na região sejam responsabilizados.
E por fim exige que todas as vítimas dos discursos e atos de ódio dos atos neonazistas sejam apoiadas com assistência à saúde mental e emocional.
“Sem justiça, sem dólares. Até que essas exigências sejam atendidas, não gastaremos um único centavo em Evendale”, defendeu Daniels no início do boicote.
