O papel da classe no fim da história
Alex Hochuli analisa como crise de 2008, eleição de Trump e pandemia abriram fissuras no 'consenso do fim da história'; confira entrevista
Alex Hochuli é um dos autores de O Fim do Fim da História (Alta Cult, 2025), livro que acaba de ser publicado no Brasil após circular em países como Alemanha, Reino Unido e Itália. A obra examina o colapso da ordem neoliberal e a volta — esquisita, fragmentada, inesperada — da política como campo de conflito. Seu ponto de partida é a constatação de que a democracia liberal ocidental, tida por décadas como destino inevitável da humanidade, está ruindo diante de nossos olhos. Nesse processo, elites acuadas buscam culpados em todos os lugares — no populismo, nas redes sociais, na Rússia — menos em si mesmas.
Radicado em São Paulo, Hochuli é escritor e consultor de pesquisa, com textos publicados em veículos como American Affairs, Compact, UnHerd, Jacobin e Damage. É também um dos criadores do podcast Bungacast, que por mais de quatro anos reúne entrevistas e debates sobre política global — base da pesquisa que deu origem ao livro.
Ao lado de George Hoare e Philip Cunliffe, ele analisa como a crise de 2008, o Brexit, a eleição de Trump e a pandemia abriram fissuras irreversíveis no “consenso do fim da história”.
Nesta entrevista ao pesquisador Leonardo Moura, Hochuli aprofunda suas ideias sobre o papel do progressismo de classe e as contradições políticas e materiais que atravessam a nova conjuntura global. Confira:
Sua base é no Brasil, mas seu currículo e vivências são de outros países. Fale um pouco sobre sua formação.
Alex Hochuli: nasci no Brasil, mas cresci na Bélgica e fui socializado no Reino Unido. Vivi boa parte da vida em um contexto político muito moldado pelo que Francis Fukuyama chamou de “fim da história”. Nos anos 2000, no Reino Unido, a política era esvaziada: falava-se em reciclagem, discutia-se comportamento antissocial, mas não havia conflito ideológico real. Tudo era pautado pelo consenso. E isso, para mim, é profundamente ideológico.
A crise de 2008 e o Brexit em 2016 mostraram as rachaduras desse modelo. Criei com outros colegas um podcast para investigar justamente isso: onde está o fim da história e onde ele está se desfazendo. Daí veio a ideia de escrever sobre “o fim do fim da história”. Não significa o retorno do socialismo ou do confronto ideológico como nos velhos tempos, mas sim que aquele mundo consensual do pós-Guerra Fria está desmoronando.
Um conceito que está no seu livro, que é de particular interesse meu, é o da classe profissional gerencial, de Barbara Ehrenreich (Professional Managerial Class ou PMC). Essa classe é uma fatia da classe média intermediária que constitui-se ocupando postos de trabalho de nível superior e com ideias progressistas pós movimentos de 1968 e hoje também está ameaçada. Poderia explicar por que esse conceito é importante para você?
O conceito de PMC nos ajudou a pensar por que a esquerda está tão distante das massas. A esquerda é formada majoritariamente por pessoas de classe média, mas não é aquela classe média do pequeno comércio ou dos empreendedores. Estamos falando de uma camada com formação universitária, que trabalha em escritórios, ONGs, agências, universidades.
Muitas vezes, usamos indicadores de renda ou percentis para falar disso, mas isso não capta a complexidade social e política. O conceito de PMC tenta articular isso: é uma classe definida pela função que exerce na reprodução da cultura capitalista e das relações de classe.

Arquivo Pessoal
E você acha que certas profissões estão mais encaixadas nesse conceito do que outras?
Sim, e é importante lembrar que o conceito foi criado com um propósito político, não apenas analítico para uso estritamente acadêmico. Barbara Ehrenreich cunhou o termo PMC para descrever uma experiência concreta: dentro dos movimentos de esquerda, ela percebia que acadêmicos demonstravam desprezo pelo trabalhador.
Ela estava pensando em uma gama ampla de profissões: jornalistas, engenheiros, técnicos de laboratório, burocratas. Não apenas pelo que pensam ou pela identidade que constroem, mas pela função material que exercem. A relação com os meios de produção não é de propriedade, mas de reprodução das condições do capital.
Como você enxerga os profissionais da comunicação nesse contexto? Jornalistas, publicitários, relações públicas…
Os comunicadores são bons exemplos da materialidade da PMC. Têm formação, têm uma visão de ética profissional e de engajamento, mas também vivem uma pressão brutal por distinção simbólica. Eles precisam contar uma história sobre si mesmos, justificar seu papel. Mesmo ao defenderem causas sociais, muitas vezes reforçam uma visão elitista e meritocrática: “eu estou do lado certo da história”. Mas no fim das contas, estão lutando por visibilidade e prestígio dentro de um mercado em escassez.
É como se a PMC estivesse ainda vivendo uma possível tentativa de implementação do fim da história por ideais liberais. Seria essa a função do progressismo atual? Legitimação simbólica?
Exato. O progressismo virou um sistema de distinção, de acúmulo de virtude. É uma forma de aperfeiçoar o capitalismo pela inclusão simbólica ou identitária: mulheres, pessoas negras, LGBT+, PCDs… Mas sem mexer nas estruturas materiais de exploração. Não se fala mais de renda, autonomia, ou condições reais de vida.
Podemos entender que alguns extratos da PMC estariam mais sujeitos a esta ideia de progressismo capitalista. Para exemplificar, você propõe inclusive um termo para distingui-los, os “mangos”. Pode explicar?
Criei como uma brincadeira séria. Mango seria uma sigla para Mídia, Academia, Ngos (ONGs) e Organizações artísticas. É esse subsetor da PMC que abraça as pautas identitárias, muitas vezes de forma disfuncional para a política.
Não é o engenheiro, o banqueiro ou o gestor que patrimonializa a empresa. São pessoas que vivem da produção de significado e que muitas vezes atravancam o debate com policiamento linguístico, correções morais, legitimando seus lugares, transformando pauta em produto e identidade em estratégia. E isso acaba afastando setores populares.

Divulgação
Trump propôs tornar a educação em Inteligência Artificial obrigatória. Você acha que a IA ainda está na mão da PMC?
A IA é uma ameaça concreta à PMC, assim como foram outras tecnologias. Os escriturários ou burocratas, por exemplo, já foram substituídos por automação. Mas agora é mais profundo: a IA está entrando em áreas como, por exemplo, o Direito.
A reação da PMC à precarização foi se agarrar ao progressismo simbólico, à moralidade, à ideia de virtude. Isso é compreensível, mas ineficaz. Em vez de defender o profissionalismo e sua relevância, parte da PMC buscou superioridade moral.
Do ponto de vista artístico, o que você sente que falta na representação contemporânea?
Representação virou um critério em si. Filmes são premiados porque têm diversidade, mas isso se esgota. O que falta é representar trabalho, produção, a materialidade da vida. Mas também não podemos cair na arte didática. O que mais faz falta é uma arte que não busque apenas participar da economia de atenção, mas que provoque imaginação. Arte que não corra atrás de público nem deseje ser viral.
O Zizek diz que hoje sonhamos com nossos próprios apocalipses. A distopia já chegou, mas seguimos com fantasias de ruptura. Queremos que algo aconteça que esclareça tudo. Mas não vai acontecer. Estamos vivendo a distopia, e seguimos funcionais dentro dela.
Mesmo com os avanços da inteligência artificial, o consumo cultural ainda reflete desigualdades sociais e escolhas de classe?
Com certeza. As empresas de IA são ótimas em apresentar soluções mágicas. Mas a realidade do consumo cultural é mais complexa. Um exemplo claro disso foi durante a pandemia: a camada da PMC apoiou amplamente o lockdown porque tinha a possibilidade de trabalhar de casa com conforto. Só que isso gerou uma contradição — defendia-se o bem comum, mas, na prática, deixava-se que os outros, em posições mais precarizadas, continuassem trabalhando presencialmente e se expondo a riscos. A conveniência pessoal passou a ser justificada como uma postura ética, progressista, quando na verdade refletia um privilégio de classe.
(*) Leonardo Moura é jornalista, pesquisador e doutorando em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM-SP. É autor dos livros Conteúdo de Marca: Os Fundamentos e a Prática do Branded Content (finalista do Prêmio Jabuti 2022) e Como Analisar Filmes e Séries na Era do Streaming, ambos publicados pela Summus Editorial. Atua como professor universitário e consultor em comunicação e cultura digital.
