Apesar de viverem na economia mais rica do planeta, com um PIB batendo os 27,36 trilhões de dólares, mais de 38 milhões de pessoas nos Estados Unidos não conseguem suprir as necessidades básicas, e cerca de 108 milhões estão se equilibrando na corda bamba entre a segurança e pobreza, como mostra “Poverty by America” (2023), o mais recente estudo de Matthew Desmond, professor de Sociologia da Universidade de Princeton.
Vencedor em 2016 do Prêmio Pulitzer por Evicted: poverty and profit in the American City (Despejados: pobreza e lucro na cidade americana, na tradução livre), neste livro, Desmond traz um panorama da pobreza, não apenas com os dados, mas com histórias que dimensionam os dramas, detalhando como o poder público lida com a questão, apontando soluções.
Segundo o estudo, atualmente, “quase um em cada nove norte-americanos, incluindo uma em cada oito crianças, vive na pobreza”, com consequências traumáticas que capturam futuros num ciclo de violências que começa cedo.
Mais de 1 milhão de crianças matriculadas nas escolas públicas da potência mundial vivem desabrigadas em motéis, carros e prédios abandonados.
O destino de (quase) sete em cada 10 meninos negros que não terminaram o ensino secundário é o de passar “pelo menos uma parte da vida na cadeia, até completar 30 e poucos anos”. E o sistema de Justiça é parte da indústria da miséria. Todos os dias, afirma Desmond, quase 2 milhões de pessoas “sentam-se em nossas prisões e cadeias” e 3,7 milhões estão em liberdade condicional, sendo que “a esmagadora maioria dos atuais e antigos prisioneiros da América são muito pobres”.
Em diversas ocasiões, as agências de justiça criminal cobram multas pesadas dessas pessoas, emitindo mandatos e mobilizando cobradores privados para obrigá-las a pagar pela acusação e pelo seu encarceramento. “Muitas pessoas definham na prisão não porque foram condenadas por um crime, mas porque deixaram de pagar [essas cobranças] ou por não conseguirem pagar a fiança”, detalha o especialista.
Os recursos abundam
Desmond traz em dados um retrato nada usual dos Estados Unidos, mas perceptível nas ruas de Nova York, Filadélfia ou Washington D.C., onde Opera Mundi percorreu em busca da percepção das pessoas sobre as eleições que deram à personagem caricata de Donald Trump, que flerta abertamente com os supremacistas e fez de sua campanha um libelo anti-imigratório, o direito de retornar à Casa Branca.
Um total de 76,7 milhões de pessoas embarcaram no slogan do MAGA (Make American Great Again), acreditando em uma melhora na economia e criticando a inflação (já contida pelo governo Biden) e a aceleração do aumento do custo de vida, em 2021 e 2022.
Como explicou à reportagem o economista Marcello Averbug, que vive a realidade do país há mais de 30 anos, “esse incremento da inflação resultou de vários fatores, entre eles os gastos públicos realizados para combater os efeitos econômicos da pandemia. Mas, rapidamente, o governo Biden e o FED (Banco Central Americano) implementaram políticas que permitiram, já em 2023, acentuado declínio da taxa de inflação”.
“Apesar desse declínio admirável, a população continuou descontente pois prevaleceu a ilusão de que deveria haver um retorno dos preços aos antigos níveis, o que é historicamente impossível. Esse descontentamento justifica-se no caso dos assalariados cujas remunerações não acompanharam o ritmo inflacionário”, complementou.
Voltando ao estudo de Desmond, que, observando um intervalo de 20 anos, entre 2000 e 2022, apontou que “numa cidade norte-americana média, o custo do combustível e dos serviços públicos aumentou 115%”, gerando uma situação inusitada na qual os pobres chegam a acessar bens baratos e produzidos em massa, como celulares e fornos elétricos, mas não conseguem pagar pela conta de luz para usá-los.
“Há cada vez mais provas de que a América abriga uma camada dura de privação, uma espécie de pobreza extrema que se pensava existir somente em lugares distantes de pés descalços e barrigas inchadas”, aponta o sociólogo que descreve o comportamento da pobreza nos país ao longo do último século como uma “linha que se assemelha a colinas suavemente onduladas”.
Duas taxas medem a pobreza no país: uma é a oficial, que indicou uma redução da pobreza em 2023, chegando a 11,1% da população, ou 36,8 milhões de pessoas. A título de comparação, em 1970, o índice batia os 12,6% da população; em 1990, chegou aos 13,5%; em 2010, subiu para 15,1%; em 2019, 10,1%.
A outra taxa é a Medida Suplementar de Pobreza (SPM), que engloba programas e índices para além dos aspectos extritamente monetários. Segundo este dado, a pobreza não diminuiu, mas aumentou 0,5%, atingindo 12,9% da população, ou seja, 41 milhões de pessoas:
A Opera Mundi Averbug disse que “um dos fatores básicos que explicam o comportamento da economia e da sociedade norte-americana é o aumento da concentração social de renda. Mesmo havendo diminuição dos índices de pobreza, a diferença entre os níveis de renda das camadas mais pobres da população e o das mais favorecidas vem aumentando há várias décadas”.
“Esse processo iniciou-se nos anos 80, no governo Reagan, a partir do qual a taxa de incremento da remuneração ao trabalho vem sendo inferior ao incremento de produtividade da economia. Como consequência desse processo, o percentual ocupado pela massa salarial no PIB vem encolhendo, conforme indica o Bureau of Economic Analysis, o equivalente ao Ministério da Indústria”, explicou.
Segundo o FED, no final de 2022, o valor das posses do 0,1% mais rico dos Estados Unidos somava US$ 17,6 trilhões, quatro vezes mais do que a riqueza dos 50% mais pobres, com US$ 4,16 trilhões. Se pegarmos os 10% mais ricos, o número salta para US$ 95,4 trilhões, duas vezes mais do que 90% da população dos Estados Unidos, cuja soma das posses totalizava US$ 44,47 trilhões.
Uma concentração de riqueza que, além de nababesca, tem em grande parte como seu mecanismo de reprodução o cassino financeiro, conforme destrincha o economista Ladislau Dowbor em A Era do Capital Improdutivo (2019). É a especulação financeira, e não a produção de bens do capitalismo tradicional, que permitia a geração de empregos e o aumento da renda da população, que vem promovendo a imensa disparidade de renda.
Uma especulação sem controle e improdutiva, cuja elite, após a crise de 2008 e depois de afundar economias no mundo inteiro, lançando milhões de famílias na miséria, acabou sendo subsidiada não pelo “laissez-faire” do mercado, mas pelo governo dos Estados Unidos da América.
Os imigrantes
O discurso anti-imigratório cai como uma luva e ganha adesão em um país que tem mais imigrantes do que qualquer outra nação do planeta. De acordo com o sociólogo Desmond, “em 1960, uma em cada 20 pessoas na América tinha nascido em outro país. Hoje, é uma em cada oito pessoas”.
Quase a metade dos imigrantes nos Estados Unidos se concentram em três estados: Califórnia, Texas e Flórida.
Em seu estudo, Desmond analisa se o ingresso de imigrantes provocou algum aumento da pobreza ou a perda de vagas de trabalho para os nativos nesses três estados. E a resposta é um categórico não. “Os estados que acolheram o maior número de imigrantes ao longo do último meio século não ficaram mais pobres. No caso do Texas e da Flórida, eles se tornaram mais prósperos”.
Desmond inclusive lembra que “os imigrantes têm algumas das taxas mais elevadas de mobilidade econômica do país”, em particular, no que diz respeito a seus filhos.
“Os imigrantes competem principalmente com outros imigrantes, o que significa que os trabalhadores mais ameaçados pelos recém-chegados são os que estão a mais tempo no país. Para muitos norte-americanos, os salários estagnaram, mas os imigrantes não são os culpados”, afirmou.
Estigmatizados, os imigrantes nos Estados Unidos, definitivamente, não contam com uma vida de plenos direitos trabalhistas, mesmo os que estão pagando todos os impostos exigidos pelo governo norte-americano. A reportagem conversou com esses imigrantes nas últimas semanas e as condições de trabalho são duras, inclusive, quando os empregadores também são estrangeiros e reproduzem na “América”, situações abusivas naturalizadas em seus países de origem, com jornadas de trabalho de “seis dias da semana, em turnos que ultrapassam (e muito) as oito horas”, na contramão das conquistas trabalhistas que conhecemos.
E as pessoas aceitam porque estão vulneráveis e se arriscam, fazem acordos e lutam para sair da cadeia de violências que, também, cria traumas.
“Não, ainda não é possível”
Em Washington, onde os faróis correm mais ligeiros que o normal – o contraste entre os super-ricos e os miseráveis é acachapante. São deslumbrantes as residências pelos subúrbios da capital do país. É literalmente imperial a arquitetura de seus prédios públicos e oponentes as praças, avenidas e as ruas em Dupond Circle. E o que dizer das coleções em seus museus, todos gratuitos e subsidiados pela elite com a devida redução dos impostos?
Em meio a tanta riqueza, a pobreza ecoa mais alto. Foi ali que a reportagem encontrou, após cinco semanas questionando a não presença delas nas ruas, a primeira criança pedindo dinheiro. Mais adiante, na mesma estação, estava Olaf sentado em uma cadeira de rodas, com um cobertor cobrindo seus joelhos, ao lado de um caixa eletrônico e um letreiro estampado “Bank of American”.
Aos 64 anos, vivendo nas ruas a capital, ele se abriga e pede dinheiro nas proximidades do prédio, onde além da temperatura convidativa, soam os acordes de Vivaldi, alternados com os hits pop da cultura norte-americana. Tem dias que Olaf se alimenta bem, outros não, tudo depende do “humor” dos que trafegam pelos trens, ônibus e metrô que desembocam neste ponto central da cidade.
Olaf recebe ajuda federal, tem acesso e já foi atendido pelo sistema de saúde público e, embora não tenha contado sobre o problema nas pernas, revelou ser residente de Washington, onde vivia em South West com a filha até 2009.
Naquele ano, com a crise arrebentando o país e enriquecendo ainda mais os que a geraram, a filha de Olaf perdeu o emprego e se mudou da cidade. Desde então, ele está nas ruas.
Embora tenha contado pouca coisa sobre a própria vida, ele se animou em espinafrar Donald Trump, inclusive, foi o único, entre as várias pessoas com quem conversamos, que contou do terror durante a pandemia e do comportamento “de maluco” de agora presidente eleito. “É um supremacista”, “quer matar o povo negro”, “os norte-americanos enlouqueceram”, analisou.
Olaf disse que sentiu que ia morrer durante a pandemia. Pegou covid e foi parar nos hospitais públicos. Ele considera Joe Biden um grande presidente por ter trazido a vacina e ter ajudado as pessoas a sobreviverem naquele período.
Sua fala encontra os dados de Desmond. Somente em 2021, primeiro ano de Biden, foram injetados US$ 521 bilhões no Medicaid, o programa voltado à cobertura dos gastos de saúde da população de baixa renda.
As medidas do governo tiveram forte impacto na redução da pobreza. Desmond destaca que apesar da perda de milhões de empregos, por conta do auxílio do governo durante a pandemia, houve uma redução de 16 milhões de pessoas da pobreza em comparação com 2018.
“A pobreza caiu para todos os grupos raciais e étnicos. Caiu para as pessoas que viviam nas cidades e para as que viviam nas áreas rurais. Caiu para os jovens e os idosos e ainda mais para as crianças. A ação rápida do governo não impediu apenas o desastre econômico, mas ajudou a reduzir a pobreza infantil em mais de metade”, analisa.
Sobre Kamala Harris, Olaf afirmou que era uma candidata muito fraca contra Trump e lamentou Biden não ter continuado no páreo. Indagado: “É mulher”. Ao que, ligeiro, ele respondeu: ” é uma mulher negra. Não, ainda não é possível”.