Raúl Alfonsín foi, já é sabido, o primeiro presidente eleito democraticamente depois da mais terrível ditadura vivida pela Argentina, de 1976 a 1983. Teve o estranho privilégio de ser o presidente, apoiado por um amplo setor da sociedade argentina, que levou os sangrentos ditadores a um julgamento civil que os condenou. No entanto, foi também o presidente que, depois desse feito sem paralelo na América Latina, promoveu as leis de impunidade (Ponto Final e Obediência Devida) que impediram o processo, julgamento e condenação de milhares de militares responsáveis pelos crimes da ditadura.
A Argentina, e sobretudo as vítimas da ditadura, tiveram de esperar cerca de 20 anos para que outro governo, também democrático, anulasse essas leis que garantiam a impunidade, a fim de que a Justiça voltasse a atuar.
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É certo que Alfonsín chegou à presidência depois de sete anos de uma ditadura na qual o partido militar era forte e contava com sócios tão ou mais fortes – as grandes corporações agropecuárias, financeiras e econômicas, e até mesmo a Igreja Católica. Como fundador da Assembleia Permanente pelos Direitos Humanos (APDH), criada um par de anos antes do golpe militar, os organismos defensores dos direitos humanos e boa parte dos partidos políticos populares esperavam de Alfonsín uma resposta imediata ao clamor.
O novo presidente daquela frágil democracia ordenou que os promotores iniciassem as investigações e decidiu esperar que a justiça militar assumisse os casos para julgar seus companheiros de armas. Os organismos de direitos humanos asseguraram que isso jamais aconteceria. Não se enganaram. Depois de dilações (adiamentos) dessa justiça militar, Alfonsín não teve alternativa a não ser avançar na justiça civil. Antes, criou um corpo especial de investigação que ficou conhecido como Comissão Nacional sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas (Conadep), que não satisfez os organismos de direitos humanos. É que a comissão, embora recolhesse as informações e testemunhos de parentes de vítimas e sobreviventes, não tinha poder para consultar os arquivos das forças armadas e de segurança.
Democracia limitada
O trabalho da Conadep foi a base do julgamento e da condenação das juntas militares que conduziram a ditadura. Esta condenação, em 10 de dezembro de 1985, pode ser considerada um marco na história moderna da América Latina. Foi um primeiro passo indispensável, mas não era o único. As Forças Armadas, com boa parte dos responsáveis pelo genocídio ainda na ativa, toleraram o julgamento de seus chefes, mas decidiram que a democracia só poderia avançar até aquele ponto. Aquele julgamento significava uma porta aberta à investigação que certamente envolveria militares de patente mais baixa, além dos cúmplices civis.
Foi assim que começaram as pressões. Surgiram de toda parte, mas as mais fortes vieram dos militares que promoveram levantes repudiados por grandes manifestações populares no país inteiro. A sociedade exigia o respeito à democracia, mas também a continuação das investigações. Apesar de tudo isso, Alfonsín optou pelo pacto.
Assim, ele e seu partido, a União Cívica Radical, votaram no Parlamento as leis do Ponto Final, que estabelecia uma data limite para a realização dos julgamentos, e de Obediência Civil, que garantia a impunidade das autoridades de média e baixa patentes das Forças Armadas, sob o argumento de que todos os atos praticados eram fruto de ordens vindas das esferas de comando.
O governo de Alfonsín acabou com todo o avanço que a democracia argentina havia conquistado e abriu o caminho para governos neoliberais – como o de Carlos Menem, responsável pelo indulto dos genocidas condenados –, que acabaram por aplicar o programa de destruição do Estado iniciado pela ditadura.
Sem pretexto
Foi necessário esperar o fim dos dois governos de Menem, a terrível experiência da Aliança (liderada por Fernando de la Rúa, um representante da ala conservadora da UCR) e o colapso social e econômico de 2001 para que o governo peronista de Néstor Kirchner buscasse e conseguisse a anulação destas leis de impunidade, permitindo que os julgamentos fossem lentamente retomados.
Muitos dos responsáveis por aqueles crimes terríveis, perfeitamente planejados nas estruturas do Estado Terrorista e levados a cabo pelos militares, já faleceram. Os que continuam vivos têm hoje mais de 70 anos, mas isso não é pretexto nem justificativa para que escapem mais uma vez da Justiça.
A democracia argentina precisa desses julgamentos para terminar de se consolidar e demonstrar que não há lugar para a impunidade. As democracias da América Latina também.
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