Sexta-feira, 16 de maio de 2025
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Em 3 de agosto de 2018, Marinete Silva, mãe de Marielle Franco, a jurista Carol Proner, Cibele Cuss, do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, e o ex-ministro de Direitos Humanos (2001-2002) e ex-coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Paulo Sérgio Pinheiro, foram recebidos pelo papa Francisco na Casa de Santa Marta, no Vaticano.

Durante a visita, Pinheiro entregou ao pontífice um relatório, até agora inédito, sobre as graves ameaças à democracia e aos direitos humanos que aconteciam no Brasil naquele ano. No artigo O estado de mal-estar social, publicado na Folha de S. Paulo, em 8 de agosto de 2018, Pinheiro contou como foi a visita ao líder católico que os recebeu “sem nenhum funcionário em volta” por 50 minutos.

Na conversa, o papa Francisco foi atualizado sobre o desmonte do país e escalada da violência, incluindo a morte da vereadora Marielle Franco e a perseguição política do sistema de justiça contra Lula. “Passados 50 minutos, o papa distribui rosários (que estavam no envelope branco) a todos, recolhe os relatórios e livros que recebeu e diz: ‘vou passar ao secretário de Estado’. Arrisco: ‘vai ser uma trabalheira’. Sobraçando tudo com um dos braços, ele se despede de nós e sai como entrou, sozinho, sem ninguém para ajudar ou abrir a porta”, disse Pinheiro sobre o encontro.

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A Opera Mundi, ele disponibilizou a íntegra do relatório entregue ao papa Francisco naquele encontro de 2018.

Confira o texto na íntegra:

Graves ameaças à democracia e aos direitos humanos no Brasil

O Brasil tem uma história marcada pela dependência externa, por profundas desigualdades sociais, pelo racismo e por uma política oligárquica. Como resultado, ao longo do século XX, tivemos sempre mais crescimento econômico do que humanização da vida.

A derrubada da ditadura militar nos anos 80 e a aprovação de uma nova constituição abriram caminhos para a promoção de uma série de medidas que visavam a inclusão social e a criação de um espaço mais democrático. Mas a convivência entre grupos políticos centrados nas demandas dos excluídos e grupos alinhados às elites econômicas nunca foi fácil – os poucos governos brasileiros efetivamente comprometidos com a igualdade, a democracia e a soberania sofreram brutal oposição das classes dominantes. Foi neste contexto que ocorreu o golpe parlamentar, midiático e judicial que derrubou a presidenta Dilma Rousseff em 2016.

O governo de fato, instalado desde então, vem patrocinando e apoiando um conjunto de mudanças centradas em uma agenda de austeridade fiscal fortemente apoiada pelas elites conservadoras, cujos principais resultados são a destruição das conquistas da Constituição de 1988 e das leis complementares que consolidaram a constitucionalidade democrática.

Em apenas dois anos, a proteção dos direitos humanos sofreu retrocessos dramáticos no Brasil. Não só foram eliminadas as garantias constitucionais de gastos sociais com educação e saúde, como também foram abandonadas agendas fundamentais para a proteção de grupos marginalizados, como a proteção e promoção dos direitos dos afrodescendentes (que representam metade da população), dos povos indígenas, das crianças e das mulheres.

O resultado prático dessas ações é um crescente estado de mal-estar social, que se traduz, entre outros exemplos, no desemprego e na redução da massa salarial, no aumento do número de excluídos dos centros das grandes cidades brasileiras, no retorno da fome nas periferias, na violência em todas as suas expressões, no crescimento do machismo e da homofobia, na retórica fascista que inunda as redes sociais. (Dados em anexo.)

O fato de mudanças tão graves na legislação e nas políticas públicas estarem sendo implementadas por um governo que não foi legitimado por eleições agrava a tensão. A crescente hostilidade política e a frequente omissão da Justiça na defesa dos grupos tradicionalmente marginalizados contribuem para a violência grave e a impunidade. Em 2017, o Brasil foi o país com o maior número de assassinatos de defensores dos direitos humanos no mundo. A violência policial e a exposição da população carcerária a condições terríveis continuam frequentes.

A morte brutal e ainda inexplicada de Marielle dos Santos, uma jovem e brilhante ativista dos direitos humanos, que representava múltiplas vozes de grupos marginalizados nas favelas do Rio, é provavelmente o símbolo mais forte da violência e da fraqueza da democracia no Brasil. Esta violência tem uma mensagem clara: falar em nome dos marginalizados implica sérios riscos. Defender os direitos dos pobres, dos excluídos, significa enfrentar estruturas de poder que intimidam por meio da violência direta e da intimidação judicial.

É neste contexto perturbador que o Brasil se encaminha para uma eleição em que um dos principais candidatos pode ser excluído por interferência do sistema de justiça. A sentença invulgarmente rápida e claramente injusta do presidente Lula é provavelmente o acontecimento político mais importante no Brasil desde o golpe de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff. As investigações sobre corrupção confirmaram problemas estruturais no financiamento da política no seu conjunto. Ainda assim, as forças conservadoras predominantes no sistema judicial conseguiram assegurar uma forte proteção dos grupos políticos de direita afetados por alegações e uma perseguição desproporcionada e por vezes injusta dos representantes da esquerda.

A Igreja e a tradição católica no Brasil sempre tiveram um papel fundamental na formação de uma consciência democrática e na sensibilização para as questões dos direitos humanos em todos os períodos históricos. Essas forças continuam presentes e colaboram na defesa das conquistas que hoje estão em risco.

A superação da crise brasileira levará tempo. Reconstruir o espaço de diálogo e a confiança nas instituições do Estado será agora uma tarefa extremamente complexa no Brasil. A judicialização de todas as questões políticas está debilitando o debate e as forças antidemocráticas ganharam um espaço preocupante nunca antes visto.

Para o futuro imediato, é essencial prestar muita atenção aos ataques a grupos marginalizados e condenar todas as formas de violência. É importante também chamar a atenção para os riscos que se criam quando se abandona uma agenda de inclusão social, econômica e política, como a estabelecida pelo marco constitucional de 1988 e pela agenda dos direitos humanos.

Na sequência, indicamos alguns exemplos.

1- Retomando o mapa da fome

O Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) lista todos os países onde mais de 5% da população consome menos do que a quantidade mínima de calorias necessárias. Em 2014, após anos de esforço, o Brasil havia conseguido sair do mapa. Desde o golpe, a fome voltou a aumentar, como resultado do crescimento da pobreza extrema, da redução das políticas de proteção social e do aumento do desemprego.

2- Crescimento da extrema pobreza e da pobreza

Considera-se em situação de extrema pobreza a população com renda familiar mensal per capita de até R$ 70,00 (€ 15,00). Entre 2001 e 2014, o Brasil reduziu o número de pessoas vivendo em extrema pobreza. Esse número voltou a aumentar e hoje já estamos no mesmo patamar de 2005.

Além da extrema pobreza, o número de pessoas pobres, ou seja, aquelas com renda mensal per capita de até R$ 140,00 (€ 30,00), também está aumentando.

3- Redução das políticas sociais

Desde 2016, houve uma redução nos orçamentos dedicados aos programas sociais. Isso configura o que os especialistas vêm chamando de “estado de desproteção social”. O próprio governo anunciou que 1,5 milhão de famílias foram cortadas do programa Bolsa Família. Mais cortes estão por vir, inclusive porque o governo propôs, e o Congresso Nacional aprovou, uma emenda constitucional que determina o congelamento dos gastos sociais por 20 anos.

Após o golpe, todos os programas sociais de habitação foram interrompidos. Não foram construídas novas casas para as camadas mais pobres.

4- Aumento do desemprego

O atual governo tomou posse em 12 de maio de 2016. Desde então e até hoje, o desemprego vem crescendo. Os dados mais recentes mostram que há mais de 14 milhões de desempregados no Brasil. Desde maio de 2016, a taxa aumentou para 2,8 milhões em números absolutos (1 milhão perderam o emprego e 1,8 milhão foram obrigados a procurar outro trabalho para compensar a renda familiar). E somados aos jovens, são agora 28 milhões de pessoas à procura de trabalho.

5- Redução do poder de compra do salário-mínimo

A Constituição brasileira estabelece que todos os trabalhadores têm direito a um salário-mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades básicas e às de sua família, com moradia, alimentação, educação, saúde, vestuário, higiene, transporte, férias e aposentadoria. Mas, na prática, mais de 40 milhões de pessoas recebem menos do que um salário-mínimo. Além disso, o valor do salário-mínimo é menor do que o necessário para garantir os direitos constitucionais. Desde o início do milénio, tem havido uma lenta recuperação do valor real do salário-mínimo. Essa recuperação foi interrompida pelo golpe de 2016. Hoje, o salário-mínimo oficial no Brasil é de R$ 954,00; quase 25% do mínimo necessário para garantir a vida de uma família de quatro pessoas, ou seja, uma renda mensal de R$ 3.752,65.

6- Aumento do número de moradores de rua

O Brasil tem mais de 100 mil pessoas vivendo nas ruas. A maioria delas nas grandes cidades. Além disso, grande parte da população brasileira vive em condições precárias de moradia, inclusive com a falta de serviços públicos básicos, como água e saneamento. Essa situação vem sendo revertida lentamente nos últimos anos. Desde o golpe de 2016, as políticas habitacionais foram reduzidas; ao mesmo tempo, o número de pessoas forçadas a viver nas ruas tem aumentado. Só no Rio de Janeiro, o número de pessoas vivendo nas ruas cresceu 150%.

7- Crise na saúde

O Brasil possui um Sistema Único de Saúde, criado pela Constituição de 1988. O sistema prevê que os três níveis de governo (nacional, estadual e municipal) sejam responsáveis por sua gestão e financiamento. Em geral, os governos investem menos em saúde do que o previsto em lei. Em 2018, o governo federal gastou 3,6% do orçamento federal em saúde. A média mundial, segundo a OMS, foi de 11,7%. Na Europa, a proporção é de 13,2%. Na Suíça, é de 22%. O investimento em saúde no Brasil é menor do que em vários países da América do Sul, como Argentina e Chile. Desde 2016, o governo de fato tem agravado a situação, por exemplo, ao afetar o Programa “Mais Médicos”, criado em 2013 em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde.

8- Crise na educação

Mais de 40 milhões de estudantes frequentam escolas públicas no Brasil, do ensino fundamental ao superior. Desde 2016, o governo federal tem adotado um conjunto de medidas que afetam a qualidade, a manutenção e a expansão do sistema público de ensino, desde a redução de investimentos até o incentivo à privatização do setor. Cerca de 170 mil estudantes universitários desistiram do curso após o golpe por não terem condições de se manter na universidade.

9- Aumento dos combustíveis

Os preços da gasolina, do etanol, do diesel e do gás têm impacto não só nos custos das empresas, mas também no custo de vida das pessoas, no transporte para o trabalho e para a escola, e também no preço do gás. Por isso, muitas famílias pobres passaram a cozinhar utilizando álcool comum. O resultado é um número crescente de pessoas hospitalizadas para tratar queimaduras de segundo e terceiro graus. Desde 2016, o governo federal mudou a política de preços dos combustíveis: além do aumento, os reajustes passaram a ser diários.

10- Agitação social crescente

Todos os dados indicam: a vida do povo brasileiro piorou desde maio de 2016. E, se não houver mudanças imediatas e profundas nas políticas econômicas e sociais do Estado brasileiro, a situação vai piorar muito mais.

11- Aumento da violência nos presídios

O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, 711.463, sendo 32% deles sem condenação. Devido à impunidade do judiciário e dos governantes, a polícia tem aumentado suas ações violentas nas periferias das cidades, atingindo sempre jovens, negros e os mais pobres. A prisão do presidente Lula foi feita contra a Constituição que determina que ninguém pode ser preso, a não ser em caso de crime em flagrante delito ou após o trânsito em julgado de todos os recursos. Somente em São Paulo, foram presas mais de 13 mil pessoas, que aguardavam julgamento em liberdade por falta de recursos.

O Brasil tem uma média de 55 mil pessoas assassinadas por ano. No campo, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), 77 lideranças foram assassinadas em 2017, duplicando a média anual do período Lula-Dilma.