Nove anos após a primeira eleição do presidente equatoriano Rafael Correa, e apesar de uma forte redução da pobreza, vários de seus apoiadores de esquerda viraram opositores. É o caso de Maria Paula Romo, uma jovem advogada feminista, principal figura do partido político Ruptura 25. Fundada em 2004 — o nome do movimento é uma referência aos 25 anos do restabelecimento da democracia —, a legenda é formada por jovens que tiveram acesso à educação formal e, pela primeira vez, não se reconhecem como representantes das elites tradicionais que dominaram o panorama político do país durante décadas.
Em 2006, o Ruptura 25 apoiou a candidatura do então economista Rafael Correa, até deixar o governo em 2011. Dois anos depois, o Conselho Nacional Eleitoral equatoriano considerou que o Ruptura 25 não tinha mais condições de apresentar candidatos e o partido foi dissolvido. Uma decisão que seus membros contestam na Justiça. “Existe um processo de concentração de poderes e de autoritarismo crescente”, denuncia Maria Paula Romo, em entrevista concedida a Opera Mundi no Rio de Janeiro, onde ela foi convidada a participar de um foro das esquerdas latino-americanas. Segundo Maria Paula Romo, o presidente Correa deveria começar a enfrentar a queda de popularidade, fenômeno causado, em parte, por conta dos problemas econômicos do país.
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Reprodução/Divulgação/Facebook
A advogada feminista Maria Paula Romo é uma das principais vozes do partido Ruptura 25, que deixou de apoiar Correa em 2011
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Leia abaixo os principais trechos da entrevista com a equatoriana Maria Paula Romo:
Opera Mundi: O partido Ruptura 25 fez campanha ativa para o candidato Rafael Correa em 2006, e até formou parte do seu governo. O que explica o afastamento de vocês e de vários outros movimentos?
Maria Paula Romo: Em 2006, Rafael Correa chegou ao poder num momento particular do país. Ele apareceu como uma resposta à exaustão das receitas do consenso de Washington e à crise de representação dos partidos políticos. Naquela época, Correa ganhou com uma maioria ampla, com o apoio dos movimentos populares e progressistas. Em seguida, ele convocou uma Assembléia Constituinte — da qual eu fiz parte — e a Constituição que saiu deste processo retomava muitos destas agendas progressistas e populares, dos movimentos feministas, ecologistas, assim como dos povos indígenas. A primeira ruptura com a esquerda aconteceu em 2011, quando o próprio presidente decidiu reformar a Constituição para reduzir a independência do Poder Judiciário. Paralelamente, ele organizou a cooptação dos órgãos de controle: a Corte Constitucional, o Conselho Eleitoral, deixando com cada vez menos espaço para a dissidência e a oposição. E ele organizou a criminalização crescente dos movimentos sociais.
OM: Pode dar um exemplo desta criminalização?
MPR: A Conaie (Confederação de Nacionalidades Índigenas do Equador), o movimento indígena, está entre os mais golpeados, e de maneira geral, todos os movimentos ligados à defesa da natureza. Outro caso é o da Fundação Pachamama, que foi dissolvida em dezembro de 2013 por um ato administrativo acusando seus membros de ter posturas políticas. Isso não é uma lei, mas o presidente emitiu o chamado “Decreto16”, que permite ao governo dissolver as organizações sociais quando considera que estão fazendo atividades políticas. Este decreto esta em estudo na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos). Paralelamente, quatro partidos políticos, entre os quais, o nosso, também foram dissolvidos. O resultado é que os únicos partidos de esquerda que têm o direito de se apresentar às eleições hoje apoiam o governo. O único caso intermediário é o caso de Pachakutik, que é o braço político do movimento indígena, que está profundamente dividido.
OM: Como é a relação entre o governo e os movimentos indígenas e ambientalistas?
MPR: Muito tensa, sobretudo desde agosto de 2013, quando o governo decidiu abandonar uma iniciativa emblemática que foi o projeto de proibir a exploração de petróleo no parque nacional Yasuni, considerado a zona de maior diversidade natural do mundo. O governo tinha defendido em foros internacionais este projeto de conservação, propondo criar um fundo de compensação com aportes nacionais e internacionais. Mas ele acabou abandonando o projeto por motivos econômicos. Isso provocou a articulação de muitos movimentos ambientalistas, que tentaram organizar um referendo sobre a exploração petroleira na região. Mas o governo e a Corte Suprema impediram esta consulta popular, apesar de ser um direito garantido pela Constituição. Um direito ameaçado por esta nova reforma da Carta Magna que está em curso, aliás.
Agência Efe
Em Quito, indígenas marcharam em protesto contra o governo de Rafael Correa no último final de semana
OM: Quais são os elementos desta reforma?
MPR: São 16 pontos. A medida principal autoriza a reeleição indefinida dos funcionários [até agora são dois mandatos], o que daria a Rafael Correa a possibilidade de ser candidato mais uma vez em 2017, algo que é vital para o seu governo, já que ele não tem nenhum “herdeiro” dentro do sistema. O texto pretende também autorizar o uso das Forças Armadas em temas de segurança interna, o que consideramos muito perigoso. E, finalmente, ele quer limitar os casos de possibilidade de referendo — algo que surgiu depois dos protestos contra a exploração do parque de Yasuni. Hoje, segundo a Constituição, é possível convocar uma consulta popular sobre qualquer assunto. A reforma constitucional quer justamente eliminar a frase “sobre qualquer assunto”. É mais uma marca do autoritarismo do presidente, que é também visível em relação aos meios de comunicação.
OM: O tema da relação dos governos de esquerda com a imprensa na América Latina é complicado, já que muitos veículos jogam um papel político de opositor usando a falta de regulação para aumentar seus poderes. A senhora critica a criação desta 'superintendência de comunicação' no Equador?
MPR: Não estou contra a regulação, ao contrário, acho que tem que haver regras na atribuição das frequências, para conseguir uma pluralidade de vozes e impedir a concentração, e também evitar que meios públicos se convertem em meios estatais. Mas, no caso de Equador, a lei não fez nada disso, a única coisa que temos é um controle de conteúdo. Por exemplo, a lei reserva 30% das frequências para meios comunitários. Mas isso nunca passou a ser mais do que uma declaração. A lei de comunicação existe há dois anos, e os meios comunitários nem chegam a 3%. A primeira punição desta nova lei foi contra um caricaturista, o que mostra que a lei não foi feita para democratizar a informação.
OM: A senhora é uma liderança do movimento feminista. Qual é a situação dos direitos das mulheres hoje no Equador?
MPR: Tivemos um giro conservador brutal nos últimos anos. Isto é ao mesmo tempo uma causa e um impacto do afastamento de algumas forças progressistas. O governo acabou com a estratégia nacional de prevenção da gravidez precoce, que foi substituída pelo Plano Família, baseado na promoção da família tradicional e seus valores, e na abstinência para evitar a gravidez. Hoje, 58 mulheres estão sendo processadas na Justiça Penal por ter feito um aborto. Nunca tinha acontecido antes, na história do país. Isso aconteceu depois do presidente abrir uma verdadeira cruzada contra o aborto. E isso é uma criminalização dos pobres, já que as mulheres da classe média fazem aborto sem problema.
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OM: No entanto, a assembléia nacional tem uma mulher na presidência…
MPR: Sim, e também duas vice-presidentes mulheres! A ironia é que são aprovadas leis cada vez mais conservadoras sobre os direitos das mulheres. Não é que o presidente Correa tenha mudado; acho que ele sempre teve posturas conservadoras. Antes, porém, ele não achava que suas convicções pessoais tinham que se impor a todos. Além disso, antes tinha no governo outras pessoas com visões mais laicas. Deste ponto de vista, o presidente coincide com a direita e isso não parece ser um problema para ele.
OM: A luta contra a desigualdade foi uma das grandes conquistas da gestão Correa — segundo dados do Banco Mundial, em 2011, cerca de 28% dos 15 milhões de equatorianos viviam abaixo da linha da pobreza; em 2006, eram 37%. Esta é uma realidade reconhecida pela população?
MPR: Claro, ele tem um apoio importante da população, sobretudo dentro dos setores populares. O Estado é bem mais presente do que antes, e a infraestrutura foi verdadeiramente desenvolvida, é algo que nós também reconhecemos. Além disso, setores da elite e da classe média também ganharam com o governo Correa. Em 2007, o orçamento do Estado era de US$ 6 bilhões; hoje, atingiu US$ 37 bilhões, ou seja 500% a mais. Isso representou uma época uma bonança enorme e uma boa parte da população aceita hoje sacrificar muitas liberdades em troca destas condições econômicas. Mas acho que o panorama político vai mudar à medida que a situação econômica ficar mais complicada.
OM: Já é o caso?
MPR: Sim. O governo está enfrentando dificuldades importantes com a mudança do ciclo econômico. A queda dos preços de petróleo representa uma forte diminuição dos ingressos para o Equador. É um problema ainda mais agudo porque nossa moeda é o dólar americano. Isso fez Correa começar a tomar medidas impopulares. Por exemplo, ele limitou as importações. No entanto, o mais grave é a reforma que acabou de entrar em vigência, que muda o sistema de aposentadoria dos trabalhadores. Ele eliminou o aporte do Estado aos sistemas de segurança social e aposentadoria. Há 70 anos que o governo paga 40% deste fundo. Agora, acabam de aprovar uma lei eliminando este aporte. Isso vai afetar o povo, apesar de não ser um impacto imediato.
OM: Como se organizam os movimentos progressistas que deixaram o governo?
MPR: Às vezes, conseguimos coordenar nossos esforços, mas temos que reconhecer que está tudo ainda muito fragmentado. A esquerda está muito golpeada, está perseguida, e os movimentos sociais também. A direita, ao contrário, se reorganiza, reciclando seus antigos quadros.
OM: Falando disso, as suas críticas ao governo não arriscam fortalecer a direita?
MPR: Acho que este medo de fazer o jogo da direita foi uma fonte de muitos erros da esquerda nos últimos anos. Por conta deste medo, evitamos debates que deveríamos ter aberto antes, e ficamos calados contra o governo. No final das contas, a direita saiu fortalecida por este silêncio: já não podemos dizer que a direita é autoritária, porque este governo também é autoritário. Já não podemos dizer que é corrupta, porque também tivemos corrupção. Também acho que já não dá mais para dizer que o governo Correa é de esquerda, já que ele abraçou muitas bandeiras conservadoras, sobretudo em relação às mulheres, aos indígenas e às questões ambientais. Aliás, acho que esta questão do medo de fortalecer a direita é um problema de todas as esquerdas latino-americanas, não só no Equador.
OM: Qual é sua visão dos governos progressistas da região?
MPR: Acho que a esquerda tem uma falta de programa em toda a América Latina. Precisamos reconstruir um programa político para este novo ciclo econômico. A redistribuição em período de bonança chegou ao seu limite. Não digo que não funcionou! Funcionou, mas isso não é mais sustentável, temos que inventar outra coisa. O outro tema importante é a questão democrática: acho que as esquerdas têm que tomar posições claras em relação ao que está acontecendo na Venezuela, ou no Nicarágua, para entender o que falhou no processo para chegar a esta situação. A esquerda também tem casos de corrupção, também coloca opositores políticos na cadeia, e também tem tentações autoritárias: acho que a esquerda tem que abandonar algumas cumplicidades que aceitou em nome do espírito de corpo.