No que a descoberta, de que era filha de militantes, afetou sua vida? “Francamente, nada. Mudei meu nome, não mudei minha vida. Sempre fui militante de esquerda, apesar de ter sido criada em uma família de militares. Parece que tenho o compromisso político no sangue”, conclui Victoria, que conta ter se juntando, aos 16 anos, ao grupo Barrios de Pie, e mais tarde, ao Movimiento Libres del Sur.
Reivindicando uma herança “guevarita”, como lembram as diversas fotos do “Che” penduradas na parede, ela assegura que mergulhar na história dos pais foi uma fonte de firmeza. “Quando descobri que meus pais morreram buscando construir uma sociedade mais solidária, senti o peso da responsabilidade”, explica.
Em 2007, os militantes do Movimiento Libres del Sur a escolheram como candidata ao cargo de deputada federal. Na época, Victoria tinha 29 anos, e aceitou o desafio de compor a coligação do casal Kirchner, a Frente pela Vitória. Contra todas as previsões, foi eleita em outubro daquele ano. “É a deputada mais jovem da história do Congresso, a segunda militante de direitos humanos a se eleger, mas a primeira mulher, e a primeira filha de desaparecidos”, lembra Horacio Verbitsky, criador do jornal de esquerda Pagina 12 e uma das principais figuras da luta contra a ditadura na Argentina.
Sua adesão ao movimento dos Kirchner vem das decisões históricas tomadas por Nestor Kirchner poucas semanas após a posse em 2003, a favor dos direitos humanos e contra os torturadores. Em maio daquele ano, Kirchner fez uma mudança na cúpula do Exército, aposentando todos os que tinham ainda algum vínculo com a ditadura. Em agosto, revogou as leis de anistia, o que abriu a porta para centenas de julgamentos.
A partir daí, os responsáveis pelas torturas e desaparecimentos começaram a ser citados na Justiça, depois de terem sido denunciados por grupos de militantes, nas chamadas campanhas de “escrache”. Nelas, defensores de direitos humanos se reuniam em frente à casa de um torturador e pintavam as paredes, para que toda a vizinhança soubesse quem morava lá. Com a eleição de Kirchner, a continuidade desses atos foi garantida pela conivência implícita das autoridades.
Lua de mel acaba
Mas a lua de mel com o casal Kirchner não durou. No começo de 2009, Victoria Donda saiu da coligação governamental. Horacio Verbitsky matiza o peso da decisão. “Não foi uma ruptura pessoal e sim, uma decisão de seu movimento político, que não concordou quando Kirchner decidiu encabeçar o partido peronista. Eles estavam a favor de uma política de esquerda transversal”, explica. Para ele, Victoria continua ao lado do governo na maioria das brigas, como, por exemplo, contra as organizações rurais que se negam a pagar mais impostos ao governo.
Há alguns meses, ela não escondeu, porém, sua irritação com a falta de apoio do governo ao seu projeto de lei, que proíbe suspeitos de violações de direitos humanos de se candidatarem em eleições. Em maio, ela entrou pessoalmente na Justiça contra Luis Abelardo Patti, que desejava tornar-se deputado federal. Nos anos da ditadura, Patti era um oficial da polícia da província de Buenos Aires conhecido pela ferocidade contra os “subversivos”. Ele nunca teve problema em admitir que se orgulhava de ter organizado sessões de tortura contra aqueles que considerava “inimigos do Estado”. A manobra teve sucesso: a Justiça finalmente desabilitou sua candidatura.
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A jovem deputada fez dos direitos humanos o centro de seu trabalho. “Victoria apresentou muitas propostas de leis para acelerar o julgamento contra os repressores. Também faz a coordenação com organismos de direitos humanos”, diz Verbitsky.
Com a aparência jovem, a portenha é vaidosa. Gosta de salto alto, “para esconder a baixa estatura” e capricha na maquiagem. Victoria não parece provocar temores na direita política. “Eles não acham que ela seja uma ameaça, pois ainda é jovem e sempre fala de uma forma muito suave”, analisa.
Ameaças
Alguns extremistas foram menos comedidos. Durante a campanha eleitoral, a candidata encontrou por diversas vezes uma boneca pendurada em sua porta com a inscrição “AAA”, em referência à Aliança Anticomunista Argentina. Conhecido também como Triple A, foi um esquadrão da morte de extrema direita em atividade em meados da década de 1970, particularmente no governo de Isabel Perón (1974-1976). Posteriormente, vincularam-se à junta militar, participando da repressão contra os “subversivos”.
“Eles ainda querem nos silenciar, mas não conseguirão. É somente por meio do confronto com sua memória que uma sociedade pode ser construída. Como vamos dizer a um jovem que é ruim roubar se, ao mesmo tempo, ele sabe que vários torturadores estão livres, impunes?”, questiona a deputada.
É por esta razão que Victoria aceita contar sua história. Em 2006 e 2007, ela autorizou o diretor cinematográfico Adrian Jaime a seguir seus passos na busca da identidade. O documentário, que leva o nome de “Victoria”, estreou em março de 2008. O filme mostra o primeiro encontro com sua avó, em Toronto, e caminhadas feitas na província (estado) de Entre Rios, norte do país, onde seu pai nasceu. Ela participa de uma reunião de ex-companheiros de escola, do Liceo Naval, e conhece uma amiga da militância.
Em entrevista ao Pagina 12, Jaime sublinha a coragem da garota: “Buscar uma conexão com a família original não é uma decisão simples”, afirma. Segundo ele, a história de Victoria pode ajudar outros que estão em situação similar. “Calculo que muitos jovens, que de alguma forma suspeitam que sejam ‘apropriados’, preferem não dizer nada”, acrescenta.
Número 78
Victoria é a neta recuperada numero 78 – é desse jeito que são apresentados na mídia argentina à medida em que aparecem. Até agora, as ‘abuelas’ conseguiram recuperar 95 netos. Segundo estimativas, existem pelo menos 400 outros jovens em famílias de militares ou amigos da junta. Para o movimento, é uma corrida contra o tempo: cada vez mais idosas, as avós morrem, e levam consigo o material genético que ajudaria no reconhecimento dos apropriados.
No site das Avós da Praça de Maio, uma galeria de fotos em preto e branco mostra jovens mulheres desaparecidas e a data aproximada do nascimento de seus filhos, segundo o tempo de gravidez de quando sumiram. Na legenda, o texto: “se você nasceu entre 1975 e 1980 e tiver dúvidas sobre sua origem, consulte os casos dos netos que estamos buscando”.
Veja também: entrevista de Victoria Donda à televisão argentina em novembro 2007, logo após sua eleição:
Leia a primeira parte do perfil:
Roubada por militares na ditadura, deputada argentina luta pelos direitos humanos
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