A crise econômica e a brutal queda dos preços do petróleo colocam o governo do presidente venezuelano Hugo Chávez em uma situação complicada. O petróleo corresponde a 93% das exportações do país e à metade dos recursos governamentais. Todavia, na Venezuela, a evolução do preço do barril tem um impacto que vai além do terreno econômico.
A avaliação é do historiador venezuelano Miguel Tinker Salas, professor do Pomona College, na Califórnia. Ele acabou de publicar nos Estados Unidos o livro The Enduring Legacy: Oil, Culture, and Society in Venezuela, em que explora os aspectos políticos, sociais e culturais do petróleo.
Em entrevista ao Opera Mundi, Salas destrincha o papel do petróleo na sociedade venezuelana, relembrando os acontecimentos no país a partir da descoberta do primeiro poço, em 1914. Desde o começo do século 20, conta o estudioso, os venezuelanos consideram que o petróleo deve subsidiar uma série de benefícios para a sociedade. Ele explica também como esta riqueza influenciou toda a política externa do país, colocando a Venezuela dentro da órbita dos interesses dos Estados Unidos.
A partir de que momento o petróleo começa a se misturar à cultura dos venezuelanos?
A primeira produção comercial surge em 1914, com a descoberta do poço de Mene Grande, no estado de Zulia. Mas era ainda fraca. A mais importante acontece em 1922, em La Rosa, com uma produção de 100 mil barris por dia. No entanto, o processo de penetração do petróleo na cultura e na alma dos venezuelanos acontece gradualmente ao longo do século 20 e está ligado ao papel que desempenha na economia e na política.
Pouco a pouco, a indústria petrolífera se apresentou como o único caminho de modernização e progresso para a Venezuela. Dessa forma, o futuro do país parece depender diretamente do futuro da indústria, que esteve nas mãos das empresas estrangeiras até 1976.
Em conseqüência disso, a relação com os donos do petróleo vira a prioridade do país. Ou seja, a classe política decide que a Venezuela deve necessariamente operar na órbita dos Estados Unidos. Isso significa não só a adaptação de um modelo econômico, mas também político, social e até cultural.
Petróleo e poder têm sido sempre muito identificados?
Sim. O desenvolvimento da indústria ocorre na sombra do ditador Juan Vicente Gómez, que governou a Venezuela de 1908 a 1935. É o primeiro líder da história do país cuja permanência no poder não depende dos interesses nacionais, mas sim do auxílio que recebe das empresas petroleiras dos Estados Unidos e da Inglaterra. Em diversas ocasiões, Washington manifestou seu apoio a Gómez, enviando delegações e navios de guerra para a zona marítima venezuelana e, sobretudo, fornecendo informação sobre os inimigos do ditador com o objetivo de mantê-lo no poder.
Com a morte de Gómez em 1935, as empresas estrangeiras têm de se adaptar à nova realidade política. Sem a relação com o ditador, elas procuram fazer parte da elaboração de um projeto de nação, transmitindo a ideia de que o que é bom para seus negócios é bom para a Venezuela. Ou seja, confundir o projeto petrolífero com o que deveria ser o projeto da própria nação.
Pode-se estabelecer uma visão direitista e outra esquerdista para o petróleo na Venezuela?
Inicialmente houve quase unanimidade entre a elite e a classe política em relação ao petróleo. Após a nacionalização do setor no México, em 1938, a Venezuela torna-se o único país da América Latina que permitia às empresas estrangeiras produzir, refinar e exportar petróleo. No entanto, a partir da década de 1930, alguns setores da esquerda começam a propor a nacionalização da principal riqueza do país. Mas nunca conseguiram dominar o debate nacional.
Em 1976, quando finalmente ocorreu a nacionalização, o debate no Congresso foi intenso. O consenso só aconteceu com a conservação de alguns antigos privilégios das empresas estrangeiras, como continuar a trabalhar no país na qualidade de consultores ou prestadoras de serviço. Contudo, o governo atual faz pouco para mudar a cultura corporativa no âmbito da recém-criada PDVSA, que permaneceu dominada pelas experiências dos dois maiores grupos estrangeiros: Creole (Exxon) e Shell.
Como explicar que a PDVSA foi durante muito tempo considerada como um Estado dentro do Estado?
O conceito de um Estado dentro do Estado realmente começou com as companhias estrangeiras na Venezuela. Para desenvolver a produção, as empresas são obrigadas a assumirem muitas das funções que deveriam ser da responsabilidade do Estado. Isso inclui a criação de infraestrutura, serviços básicos como água, eletricidade, instalações médicas, residências, e uma ampla rede de programas sociais e culturais destinadas a trabalhadores das empresas e também à nação.
Portanto, a idéia de Estado dentro do Estado tem dois componentes: a material, mas também a política, já que depois da nacionalização, a nova empresa PDVSA, como as multinacionais estrangeiras no passado, exerce uma enorme influência política e defender seus interesses dizendo que são os da nação. No final das contas, os interesses da PDVSA são superiores aos do país.
O petróleo é um privilégio da elite ou um bem de todos? Como ele é visto pelas diversas classes sociais?
Desde a década de 1930, o Estado promove a política de “semear o petróleo”, ou seja, utilizar os recursos petroleiros para promover o desenvolvimento dos setores econômicos não petroleiros. O Estado assume assim o papel de gerente da riqueza petrolífera para a nação. Inicialmente está obrigado a concorrer com as transnacionais que também oferecem uma gama de benefícios para a população, não apenas os venezuelanos empregados nessas empresas, mas todos os que se encontram próximos dos campos de petróleo.
O Estado continua a projetar a idéia de que o petróleo irá produzir modernização, calando todas as críticas em relação a esta política. A partir dos anos 1950, porém, as empresas do setor reduzem suas ações sociais e o Estado assume gradualmente estas funções.
No entanto, os cidadãos venezuelanos não enfrentaram a situação do mesmo jeito. Um funcionário de PDVSA tinha uma posição de privilégio. Os empregados da empresa eram bem pagos, recebiam as melhores prestações e desfrutavam de muitos benefícios, incluindo alimentação, educação e moradia.
Pouco a pouco, a distância entre este mundo e a realidade em que a maioria dos venezuelanos vive, foi aumentando. A crise dos anos 1980 destaca o fosso entre os setores que beneficiam a indústria do petróleo – que inclui grande parte da classe média, para quem o desenvolvimento que o petróleo traz permite a abertura de novos espaços – e os setores que ficam à margem da indústria petrolífera, onde a riqueza do petróleo continua ilusória.
Esta contradição se manifesta de maneira evidente durante o “Caracazo”, a rebelião popular de 27 de fevereiro de 1989, que matou entre 400 e mil pessoas. Eventualmente, foi este fosso que provocou a rejeição do modelo político que existia na Venezuela, antes dessa data, e mais tarde, a eleição de Hugo Chávez.
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Entrevista, parte 2: Como o petróleo influencia as relações da Venezuela no exterior
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