Aurea Santos/ANBA
Filippo Grandi é comissário-Geral da UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina da ONU), exclusivamente dedicada aos refugiados palestinos na Cisjordânia e em Gaza, e na Jordânia, Líbano e Síria. São cinco milhões de pessoas que querem voltar ao que consideram suas casas, em Israel ou nos Territórios Ocupados Palestinos.
Grandi está no Brasil para “agradecer a recente ajuda do governo e estreitar as relações com o país”. Isso porque, nos últimos dois anos, o Brasil se tornou um dos maiores doadores da UNRWA, saltando de um milhão de dólares por ano para 7,5 milhões de dólares só em 2011. O comissário confirmou que o Brasil é, “de longe”, o maior doador entre os Brics (Brasil, Rússia, China e África do Sul).
Em entrevista ao Opera Mundi, Grandi alerta, porém, para as dificuldades financeiras enfrentadas pela agência da ONU, além de fazer uma análise sobre a situação atual do conflito no Oriente Médio. “Em um mundo onde os governos estão cortando salários, como eu vou pedir à Europa para que pague os salários de professores palestinos?”, questiona.
Opera Mundi: Por que é importante incentivar uma maior participação do Brasil na UNRWA?
Filippo Grandi: Uma das razões é simplesmente material, pois precisamos de apoio financeiro. O apoio para os palestinos é necessário, seja ele através da Autoridade Palestina ou da UNRWA — os dois principais caminhos. Atualmente, todos sabem que os doadores tradicionais, especialmente os europeus, estão com muitas dificuldades. Os palestinos, como receptores de ajuda, estão procurando outros caminhos, países que emergem ou emergiram na economia mundial como importantes atores.
A outra razão, talvez mais importante, é que o Brasil é um país que, como a maioria dos latino-americanos, tem estado na linha de frente do apoio político à Palestina. Então, há um grande senso de gratidão por isso. Eu acredito que os palestinos, marginalizados, discriminados e oprimidos, valorizam a solidariedade de povos que tiveram que lutar por direitos humanos, uma distribuição mais igualitária dos recursos. O Brasil simboliza essas lutas.
OM: Além da ajuda financeira, o senhor busca apoio político para a questão dos refugiados?
FG: Eu não venho fazer trabalho político, este não é meu trabalho. Claro que nosso trabalho está no meio da política, esta é a região mais política do mundo. Porém, apesar de soar inocente, precisamos falar desse processo de paz. Este é, em essência, o principal ponto político no Oriente Médio. Isso porque, a não ser que haja um acordo de paz, a questão dos refugiados sempre existirá. Há tentativas dentro dos EUA, não do governo, mas por parte de grupos, de isolar a questão dos refugiados e fazer com que seja abordada de forma separada do processo de paz. Isso é impossível, não será aceito pelos países árabes ou pelos palestinos.
OM: Mas o conflito também não se resolve sem dar uma solução à questão dos refugiados. Os fracassados Acordos de Oslo não concretizaram essa separação entre a “solução do conflito”, circunscrita às bases territoriais de 67, e a questão dos refugiados, que seria abordada mais tarde separadamente?
FP: Mas os Acordos de Oslo colocam a questão dos refugiados ao lado da questão de Jerusalém, que seriam definidas no status final. Há um sentido neste pacote, pois todas essas coisas se inter relacionam. Meu apelo é que se não for solucionado o conflito, não solucionamos a questão dos refugiados, que continuará a crescer. A taxa de crescimento dos refugiados é de 3% em média. Isso traz consequências econômicas, como o aumento de custo para a comunidade internacional.
Efe
Criança palestina toma banho no bairro de Al-Zaiton, em Gaza. Território sofre cerco israelense há cinco anos
Estou muito preocupado, e direi isso ao ministro [das Relações Exteriores, Antonio Patriota], que a UNRWA está se tornando financeiramente insustentável, custando para a comunidade internacional mais de um bilhão de dólares por ano. Para uma agência é muito dinheiro, e tudo isso vem de um fundo voluntário. Em um mundo onde os governos estão cortando salários, como eu vou pedir à Europa para que pague os salários de professores palestinos? Esta situação não é sustentável, mas se a questão dos refugiados não for resolvida, permanecerá assim.
OM: Mas como ligar a questão dos refugiados à solução do conflito? Especialmente porque a questão dos refugiados implica na ideia de um Estado só ou então em Israel com uma maioria não-judaica.
FG: Por isso que, apesar de toda a crítica que recebeu, o processo de Oslo acertou nessa questão. Os itens deixados para o status final estavam inter-relacionados e só podem ser solucionados em conjunto. Os refugiados e a questão de Jerusalém talvez sejam os mais complicados, pois são “existenciais”. São para os judeus, ou para os judeus israelenses, e para os árabes, para os árabes palestinos em particular. E quando a política se torna uma questão existencial, torna as coisas muito, muito difíceis, não apenas no Oriente Médio.
OM: O senador dos EUA Mark Kirk propôs uma emenda que mudaria a classificação do status de refugiados palestinos (separação entre os expulsos da Palestina e os descendentes). A emenda de Kirk preocupa a UNRWA em termos de ajuda financeira?
FG: Sim. Os EUA são nossos maiores doadores, ao lado da União Europeia. São cerca de 250 milhões de dólares por ano, seja a administração republicana ou democrática. No entanto, no Congresso, há um grupo considerável de membros que são hostis à UNRWA, ou melhor, são hostis à questão dos refugiados. Eles veem que a questão dos refugiados é existencial para os judeus israelenses e, na visão deles, ameaça o caráter judeu do Estado. A emenda diz que, se o Departamento de Estado quiser continuar a dar dinheiro à UNRWA, deve saber quantos dos cinco milhões de refugiados são originais da Palestina, ou seja, quantos, em 1949, chegaram à Síria, ao Líbano, à Jordânia. E esse grupo é muito pequeno hoje, é a vida. Em si, a medida é inocente, mas nosso medo é que num próximo passo o governo norte-americano atenda somente os expulsos, e não a todos os outros. Acho que a emenda tem sua premissa em uma interpretação legal incorreta da legislação de refugiados. Mas há questões políticas por trás disso, não legais.
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OM: Como é a relação da UNRWA com o governo israelense?
FG: É uma relação de negócios. Em primeiro lugar, é muito frequente, pois todos os dias mantemos contato com os militares, e também com o Ministério do Exterior, pois eles são a força ocupante. Outro ângulo interessante é ver o que Israel diz todos os anos na Assembleia Geral. Todos os anos o Comissário-Geral, no caso eu, vou a Nova York em novembro e apresento o relatório. Israel sempre critica, geralmente as declarações sobre direitos humanos, direitos dos palestinos, direitos dos refugiados, mas apreciam nosso trabalho. Eles muitas vezes não gostam do que dizemos sobre o bloqueio à Faixa de Gaza ou a expansão dos assentamentos, mas cooperam ao nos permitir trabalhar. Tecnicamente, se nós fossemos embora, eles teriam que cuidar dos refugiados.
OM: A pior situação é a do Líbano, onde é negada aos palestinos uma série de direitos civis. Qual a relação com o governo libanês?
FG: Já dissemos ao governo milhões de vezes que a questão dos direitos palestinos deve ser abordada urgentemente. Os palestinos no Líbano usufruem pouco dos direitos que deveriam, como questões de propriedade, legalização empregatícia e acesso a alguns serviços. Eles dependem totalmente da UNRWA ou da economia informal, o que fez com que se tornassem muito pobres e marginalizados. Acho que o atual governo, os dois anteriores, mas especialmente o último, de (Najib) Mikati, entende isso muito bem. Há muitas restrições para falar da política libanesa herdadas da guerra civil e também do equilíbrio muito delicado que há entre as três principais comunidades (cristãos, sunitas e xiitas). E os palestinos, sendo sunitas, são um fator complicador. Mas uma coisa que conseguimos fazer foi melhorar as condições no campo, pois há dez anos não podíamos sequer melhorar as condições do campo em questões básicas como cuidados sanitários.
OM: Como está a situação dos refugiados palestinos na Síria?
FG: Há 500 mil refugiados registrados na Síria. Até recentemente, esperávamos que eles pudessem se manter fora do conflito, o que não aconteceu. Nas últimas semanas, algumas das regiões onde os refugiados palestinos vivem se envolveram no conflito e alguns deles foram mortos. Não posso dizer que os palestinos estejam sendo alvejados pelas partes do conflito, houve alguns incidentes, mas em geral eles são pegos no fogo cruzado, como ocorre com a maioria dos civis na Síria. Eu estive lá no final de junho e, para mim, a impressão mais marcante foi de medo, o medo de sair de casa de manhã e encontrar um posto de controle que pode ser do governo, da oposição ou mesmo de uma milícia local.
OM: O senhor teme que uma situação parecida com a dos palestinos do Iraque depois da queda de Saddam Hussein – mortos por milícias – possa acontecer?
FP: Há diferenças. A comunidade no Iraque era muito pequena comparada com a da Síria, além de ser considerada aliada de Saddam Hussein. Os refugiados na Síria são mais neutros. Mas nunca se sabe. Em uma situação de anarquia e de queda da lei e da ordem, estrangeiros e minorias ficam expostas. Há riscos. Outra coisa é que no caso do Iraque, a comunidade palestina, maioria de sunitas, não estava mais com o establishment político de governo (xiitas), ao contrário do que pode ocorrer na Síria.