O Quênia segue sendo palco de massivos protestos mesmo após o presidente William Ruto, da conservadora Aliança Democrática Unida (UDA, por sua sigla em inglês), ter voltado atrás e prometido arquivar a Lei de Finanças de 2024. A medida debatida no Congresso na semana anterior foi, de acordo com as autoridades quenianas, um “gatilho” para a eclosão de novas e intensas manifestações com pautas mais amplas contra as políticas do governo.
A Opera Mundi, Paris Yeros, que é doutor em relações internacionais e professor no programa de pós-graduação Economia Política Mundial da Universidade Federal do ABC (UFABC). explicou que as medidas econômicas impostas pelo governo Ruto impactaram diretamente a população queniana, em especial as camadas mais pobres da sociedade.
Para ele, a lei e a postura do governo decorrem de uma “insistência” em sustentar uma aliança com o Ocidente, na tentativa de manter uma “orientação neoliberal dura no país e na região” e do interesse em servir à política externa dos Estados Unidos.
“O Quênia tem se tornado um dos principais aliados do Ocidente na África, especialmente dos Estados Unidos […] cumprindo, há muito tempo, funções geopolíticas na região a serviço da política externa norte-americana”, afirmou o docente.
Ainda segundo Yeros, essas medidas de austeridade se enquadram numa aliança ocidental cujo objetivo “não apenas é geopolítico, mas também econômico”. “Abrir a economia do Quênia para estabelecer posições cada vez mais fortes na região”, disse.
Na terça-feira (02/07), as autoridades do Quênia confirmaram a prisão de ao menos 272 manifestantes em diversas regiões do país. Somente na capital Nairóbi, 204 foram detidos. De acordo com a Diretoria de Investigações Criminais (DCI, por sua sigla em inglês), os presos são suspeitos de envolvimento com “atividades criminosas durante as manifestações, que originalmente tinham como objetivo protestar contra questões de governança”.
▶️Protests continued in Nairobi and elsewhere in Kenya Tuesday over a tax-hike bill, even after President William Ruto said he would not sign it in the wake of the storming of parliament last week.https://t.co/KPvvkvN5jh pic.twitter.com/CJt8K1Kizk
— Voice of America (@VOANews) July 2, 2024
A gota d’água
A revolta dos jovens manifestantes começou em junho e teve como objetivo pressionar a gestão queniana a derrubar o projeto de Lei de Finanças de 2024, apoiado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). O texto previa a taxação de diversos artigos de necessidade básica para a população, como remédios e itens de alimentação, incluindo um imposto sobre valor agregado (IVA) de 16% sobre o pão e 2,5% sobre veículos automotores, além de aumentar alguns impostos existentes.
Segundo o presidente Ruto, a dura medida econômica era necessária para pagar as dívidas e colocar as finanças nacionais do Quênia de volta nos trilhos. Diversos fatores agravaram esse âmbito, como a saída da pandemia e a crise cambial, conforme explicou o professor Yeros à reportagem.
No entanto, muitos quenianos se sentiram forçados a pagar mais do que a parte justa, enquanto a atual gestão carece de ações de combate à corrupção que atormenta os governos quenianos há décadas.
Segundo uma reportagem do jornal alemão Deutsche Welle, em 2023, os preços da gasolina aumentaram 22%, os da eletricidade quase 50% e dos produtos de primeira necessidade, como o açúcar e feijão, quase 60% e 31%, respectivamente.
Em julho daquele ano, Ruto também promulgou uma lei financeira esperando gerar mais de 2,1 bilhões de dólares para os cofres do governo, que se encontravam esgotados. A medida incluía novos impostos e aumentos sobre o preço dos produtos básicos, como o combustível e os alimentos, além de uma taxa controversa sobre todos os contribuintes para financiar um programa de habitação.
Após uma violenta repressão policial convocada pelo mandatário contra os manifestantes, incluindo aqueles que ocuparam a sede do Congresso em Nairóbi, na semana passada – e resultou na morte de ao menos 22 pessoas – Ruto voltou atrás e declarou que não assinaria o documento.
No entanto, nesta terça-feira, os protestos ganharam nova força ao incluírem pautas antigovernamentais mais amplas, o que atraiu milhares de participantes em distintas regiões do país, como em Mwembe Tayari, Kitui County, Isiolo County, entre outras. De acordo com a agência de notícias Reuters, o movimento não tem uma liderança oficial.
Sights and sounds across Nairobi CBD .#KenyaProtests #RutoMustGoNow pic.twitter.com/MtAJvjhFPU
— Emeka Gift Official (@EmekaGift100) July 3, 2024
Ainda segundo a Reuters, a gota d’água teria ocorrido no domingo (30/06), quando Ruto concedeu uma entrevista à mídia local defendendo a repressão policial contra o que chamou de “criminosos” pela escalada dos protestos. Mesmo com registros de mortes e feridos, o presidente afirmou que as forças de segurança tinham feito o melhor que podiam dada as circunstâncias.
A Opera Mundi, o professor Yeros disse que o governo mobilizou não apenas a polícia, mas também o Exército. “O Exército segue nas ruas e não é treinado, obviamente, para isso. Uma violência completamente desproporcional colocando o Wxército nas ruas, isso explica o motivo pelo qual os protestos continuaram”, disse.
Partido Comunista do Quênia
Quando o presidente Ruto recuou a assinatura da Lei de Finanças e reconheceu a vitória do povo, o Partido Comunista (PC) do Quênia celebrou a derrota do governo e endossou um comunicado publicado pela organização de mídia internacional People’s Dispatch.
“Durante mais de uma semana, milhares de quenianos têm-se mobilizado nas ruas de Nairóbi contra a Lei de Finanças 2024 apoiada pelo FMI, que intensificaria a crise contínua do custo de vida que as massas enfrentam no país. Os seus corajosos protestos foram recebidos com forte repressão policial”, dizia a nota.
Nas eleições de 2022, da qual Ruto saiu vitorioso, alguns descendentes de seu partido se desfiliaram e integraram o PC. De acordo com o professor da UFABC, as “palavras de ordem eram diferentes” e envolviam pautas como anticorrupção e educação, tendo como fundamento os princípios da soberania e da democracia.
“A linha hoje é anti-imperialista. Claramente se opõe à aliança [do Quênia] com o Ocidente. Se opõe a Israel, denuncia as sanções contra Cuba. Sua reivindicação maior tende a ser a remoção do governo de Ruto”, afirmou Yeros.
Inclusive, na segunda-feira (01/07), o PC ameaçou retaliar as Forças Armadas convocadas pelo presidente na contenção dos manifestantes “inocentes e desarmados” nas ruas, afirmando que o “único equalizador será uma luta armada”.
If President Ruto continues to shoot innocent unarmed demonstrators in the streets then the only equalizer shall be an armed struggle, this is the new consciousness after the parliament massacre, Githurai and now Rongai massacre? This is not a picnic! pic.twitter.com/rDPY6Oi4T9
— Communist Party of Kenya (@CommunistsKe) July 1, 2024