Começou nesta terça-feira (18/06) em Munique o terceiro julgamento que envolve réus acusados de pertencer a uma rede terrorista de extrema direita que planejava derrubar as instituições democráticas alemãs e tomar o poder através de um golpe de Estado.
O julgamento desta vez envolve oito membros remanescentes do grupo União Patriótica, que ocupavam posições diversas na organização, entre fundadores e financiadores. A imprensa alemã apelidou esse último grupo de réus – seis homens e duas mulheres – de “ala esotérica”, por causa da presença de membros que se autointitulavam astrólogos e videntes. Alguns dos réus de Munique também foram apontados como membros de um “conselho” da rede extremista – criado à semelhança de um gabinete de um governo legitimo.
Entre os réus dessa etapa estão Melanie Ritter, uma médica que participou de protestos antivacinas e que também dizia ser uma vidente ou medium. Ela também foi apontada como uma das financiadoras da organização. Outro réu é Christian Wendler, um ex-militar e paisagista, que tentou recrutar outros membros e chegou a estocar mais de uma dezena de armas de fogo. Outra acusada é Ruth Hildegard Leiding, uma autora de livros de astrologia que seria nomeada chefe de comunicações do grupo caso a tenativa de golpe tivesse prosseguido.
Em abril e maio, tribunais de Stuttgart e Frankfurt já haviam dado início a outros dois julgamentos distintos, que envolvem 18 acusados de pertencerem ao núcleo de liderança do grupo e a uma chamada “ala militar”. No total, nos três julgamentos, 26 pessoas enfrentam acusações de formação de organização terrorista e planejamento de uma ação de alta-traição. Um dos réus de Munique também será julgado por violação da Lei de Armamentos do país.
Por causa da complexidade dos processos – espera-se que acusados em um julgamento testemunhem em outros, por exemplo –, todos os procedimentos judiciais só devem ser concluídos em 2025.
Ideologia e planos do grupo
Em 7 de dezembro de 2022, 3.000 policiais foram mobilizados na Alemanha em uma das maiores operações antiterrorismo da história moderna do país europeu.
Em poucas horas, os alvos foram revelados para a imprensa: 25 pessoas foram presas por suspeita de filiação a uma organização terrorista e por suspeita de planejar um golpe. Mais três pessoas acabariam presas nos meses seguintes.
Os presos não eram extremistas religiosos ou estrangeiros, em contraste com outras grandes operações policiais anteriores, mas quase todos alemães, vários já idosos e com curso superior. Entre eles estavam aristocratas, dois ex-coronéis do Exército, um ex-investigador de polícia, uma médica, um tenor, um chef de cozinha, uma astróloga, um instrutor de sobrevivência na selva e até uma juíza e ex-deputada. Uma cidadã russa também foi presa. As autoridades também apreenderam mais de 300 armas de fogo e mais de 150 mil munições.
Os presos foram acusados de serem membros de uma célula de extrema direita chamada União Patriótica, com laços estreitos com o movimento Reichsbürger (“Cidadãos do Império Alemão”), que rejeita a moderna democracia alemã. Segundo as autoridades, os membros do grupo acreditavam em um “conglomerado de teorias da conspiração”, entre elas a crença de que a Alemanha moderna seria uma construção ilegítima governada por membros de um chamado Deep State (Estado profundo).
Segundo o Ministério Público Federal alemão, a União Patriótica planejava realizar um ataque ao Bundestag em Berlim para provocar caos no país e criar condições para uma tomada violenta do poder. Como preparação, o grupo aparentemente organizou exercícios de tiro e chegou a espionar o interior do Bundestag. “Desde agosto de 2021, o pequeno grupo preparava, com um braço armado, a invasão do Bundestag em Berlim, com o objetivo de prender os deputados e derrubar o sistema”, apontou a denúncia.
As autoridades também afirmam que o grupo extremista também teria tentado recrutar soldados e policiais e elaborado listas de inimigos, além de tentar formar centenas de células armadas em todo o país.
Pelo plano dos golpistas, a ofensiva seria colocada em marcha num chamado “Dia X” e, caso fosse bem-sucedida, resultaria na nomeação do seu principal líder, um aristocrata chamado Heinrich 13º Reuss, como novo chefe de Estado alemão. Os conspiradores então pretendiam negociar um “novo tratado de paz” com as antigas potências aliadas da Segunda Guerra Mundial: Estados Unidos, França, Reino Unido e principalmente com a Rússia.
Núcleo de liderança
O acusado que ganhou mais notoriedade após o desbaratamento da rede é Heinrich 13º, que ostenta o título de “príncipe” de Reuss e que atuava como empresário do ramo imobiliário. Apontado como um dos principais líderes da conspiração, Reuss também foi acusado de tentar se reunir sem sucesso com representantes do governo russo para obter apoio ao golpe. Segundo os promotores, caso o golpe fosse bem-sucedido, Heinrich 13º assumiria a liderança do Estado alemão.
Outra acusada de integrar o núcleo de liderança do grupo é Birgit Malsack-Winkemann, juíza e ex-deputada do partido ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD), que exerceu mandato no Bundestag de 2017 a 2021 e teria planejado franquear aos conspiradores acesso a edifícios parlamentares. Ela foi suspensa de suas funções na Justiça de Berlim após a operação policial de 2022.
Um dos supostos líderes do grupo também seria o ex-militar Rüdiger von Pescatore. Entre 1993 e 1996, ele foi comandante de um batalhão de paraquedistas, e teria sido expulso das Forças Armadas alemãs devido à venda ilegal de armas dos estoques do antigo exército da Alemanha Oriental. Rüdiger também costumava passar parte do seu tempo no Brasil. Há empresas registradas em seu nome em Santa Catarina e ele atuou como representante comercial de companhias de energia no Brasil. Os três estão sendo julgados como parte do núcleo de liderança, em Frankfurt.
Outros dois ex-militares também foram acusados de integrar a liderança do grupo: Maximilian Eder, um ex-coronel da Bundeswehr (Forças Armadas da Alemanha), e Peter Wörner, ex-soldado e que atuava como instrutor de sobrevivência na selva quando foi detido. Pescatore, Eder e Wörner integraram em diferentes momentos o Comando de Forças Especiais (KSK, na sigla em alemão), uma tropa de elite das Forças Armadas alemãs, que nos últimos anos foi envolvida em uma série de escândalos após a revelação de que membros da unidade tinham ligações com a extrema direita.
Segundo o Ministério Público, o restante da liderança era composta pelo ex-investigador de polícia Michael Fritsch, que atuava em Hannover e que foi dispensado da corporação por suspeita de extremismo no início de 2022; Johanna Findeisen-Juskowiak, uma coach e ativista antivacinas; Hans-Joachim H., um consultor financeiro que teria doado 140 mil euros para o grupo; e a cidadã russa Vitalia B., apontada pela imprensa alemã como parceira do “príncipe” Reuss e que também teria tentado entrar em contato com Moscou em busca de apoio para o golpe.
O que é o movimento Reichsbürger?
A rede União Patriótica foi apontada pelas autoridades como fortemente associada ao movimento Reichsbürger. O movimento, que ganhou notoriedade os últimos anos, nega a legitimidade do moderno Estado da Alemanha. Os adeptos acreditam que o Estado atual não passa de uma construção administrativa artificial e que a Alemanha ainda seria ocupada pelas potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial. Para eles, as fronteiras de 1937 do Império Alemão ainda existem.
Os Reichsbürger também não aceitam a legalidade das autoridades governamentais da Alemanha. Vários se recusam a pagar impostos e declararam seus próprios pequenos “territórios nacionais”, que batizam com nomes como “Segundo Império Alemão”, “Estado Livre da Prússia” ou “Principado da Germânia”. O ex-policial Fritsch, um dos réus do julgamento de Stuttgart, por exemplo, chegou a indicar “Prússia” (estado alemão dissolvido em 1945) como local de nascimento quando solicitou um novo passaporte em 2022, segundo a imprensa alemão.
Outro traço em comum dos seguidores do movimento Reichsbürger é a rejeição da democracia, tendências monarquistas, xenofobia e antissemitismo.
Os membros desses grupos costumam imprimir seus próprios passaportes e carteiras de motorista com antigos símbolos do Império Alemão (1871-1918).
As autoridades de segurança estimam que existam 20.000 Reichsbürger na Alemanha, dos quais cerca de 2.300 são propensos a cometer atos de violência. Em um caso notório da Alemanha, em abril de 2022, quatro seguidores do movimento foram acusados de arquitetar um plano para tentar sequestrar o ministro da Saúde da Alemanha, o social-democrata Karl Lauterbach, por causa de medidas impostas pelo governo contra a pandemia. Armas e munições foram apreendidas na ocasião. O movimento também costuma se mesclar com adeptos de teorias conspiratórias, como o culto QAnon e o meio antivacinas.