De todos os conflitos que agitam a Bolívia hoje em dia, a questão da terra é a mais polêmica. A idéia de limitar a área da propriedade privada tornou-se tão controversa no âmbito da Assembléia Constituinte que os delegados resolveram não decidi-la sozinhos. Assim, no próximo domingo, além do “sim” ou “não” para a reforma constitucional, os eleitores vão votar também se o limite de terra será de 5 mil ou 10 mil hectares por proprietário – cada hectare equivale a um campo de futebol.
A Bolívia tem uma das distribuições de terra mais desiguais do mundo: menos de 1% da população possui mais de dois terços – no Brasil, 1,6% dos proprietários controla quase metade das terras, segundo o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). A maioria indígena e pobre sempre reivindicou que as grandes fazendas fossem divididas, e o presidente Evo Morales chegou ao Palacio Quemado prometendo fazer exatamente isso.
Nos últimos três anos, houve alguns avanços: 7 milhões de hectares foram distribuídos, prioritariamente para grupos indígenas – 2 milhões a mais do que entre 1995 e 2005. O governo também alega ter feito progressos na reapropriação de terras griladas, regularizando mais de um terço da área do país.
Nem sempre foi fácil. Os latifundiários costumam tentar impedir os fiscais de entrar em suas terras, às vezes com resistência armada. Eles argumentam que a limitação da propriedade privada prejudicaria a economia do país. Um dos itens dos estatutos de autonomia declarados pelos estados opositores do leste boliviano no ano passado, de forma ilegal, determina que a regulação sobre a terra e a reforma agrária não seja de competência do governo federal, e sim das administrações departamentais.
Faltando três dias para o referendo, o assunto está na boca do povo no departamento oposicionista de Santa Cruz, o mais rico do país. Camisetas com o “não” estampado, bonés, pôsteres, outdoors estão por toda parte, mas o foco principal não está na questão dos limites de propriedade, e sim na forma como a nova Constituição relativiza a fé e a educação católica, ao transformar a Bolívia num país multiétnico e multicultural.
Isso provavelmente ocorre por causa de uma decisão tomada pelo Congresso horas antes de o texto final ser aprovado. De repente, a questão tornou-se não retroativa, ou seja, o limite de 5 mil ou 10 mil hectares só será válido para terras adquiridas a partir da promulgação da nova Carta Magna, caso isso ocorra. A regra não valerá para os atuais proprietários.
O governo alega que essa decisão não compromete a essência do projeto de reforma agrária: tirar a terra de quem a adquiriu ilegalmente, ou de departamentos que não servem a propósitos econômicos ou sociais. Mas esse argumento não consola os milhares de sem-terra do país. Para eles, dividir os latifúndios é o ponto nevrálgico para uma mudança de verdade.
“Eles me mandaram sair”, conta Narda Baqueros, líder de um grupo de castanheiros, sobre uma recente viagem a uma pequena comunidade no estado de Pando, onde ela estava para organizar workshops sobre a nova Constituição.
“Eles [trabalhadores rurais] se sentiram traídos. Pensaram que esse governo iria para cima dos patrões, mas agora a comunidade não quer nem ouvir falar da nova Constituição”. Muitos, ela diz, vão provavelmente votar pelo “sim”, “mas não de coração”.
Leia mais sobre o referendo e sobre a legalização dos idiomas indígenas.
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