O jovem diretor de teatro Vicente Pereira liga o aparelho de som, liberando uma frenética música angolana. Para os adolescentes que aguardam sentados em cadeiras de plástico, é o sinal. Vestidos com uma camiseta vermelha, eles ocupam o palco montado no núcleo Vila do João, um centro cultural organizado pela ONG Ação Comunitária no Complexo da Maré, um conjunto de favelas no Rio de Janeiro.
A história, interrompida por cenas de dança, é bem resumida pelo título da peça, Prevenção é a Solução. São jovens no começo da vida sexual, que descobrem, entre susto e tragédia, a necessidade de usar a camisinha para não contrair o vírus HIV e doenças sexualmente transmissíveis em geral, além de evitar gravidez precoce.
No final da peça, todos os adolescentes, já aliviados, viram para o público para se apresentar. “Meu nome é Francisco, tenho 15 anos, sou brasileiro”, grita o primeiro, “Meu nome é Thamirez, tenho 14 anos, sou angolana”, segue uma menina com o rosto muito fino. “A idéia é dupla: difundir mensagens sobre a saúde reprodutiva, mas também fazer trabalhar juntos adolescentes angolanos e brasileiros”, explica Pereira, feliz com o resultado.
A peça reúne jovens do Complexo da Maré – onde vive grande parte dos refugiados e migrantes originários de Angola – assim como atores da favela da Rocinha. Os adolescentes escolheram o nome Kilelê para batizar o grupo de teatro. A expressão significa “vamos conversar” no idioma quicongo, falado em Angola.
O projeto da peça foi desenvolvido pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e pela Ação Comunitária com o objetivo de fortalecer os vínculos entre os brasileiros e a população refugiada. “Quando a gente começou a ensaiar com os angolanos, era muito esquisito, eu nunca tinha visto estrangeiros. Além disso, eles têm uma gíria muito diferente”, conta Lissandra, da Rocinha. “Depois, percebi que eles eram que nem a gente!”, acrescenta, abraçando a angolana Thamirez.
Lissandra e seus amigos brasileiros já aprenderam alguns passos das danças angolanas. Na Vila do João, eles já experimentaram pratos típicos do país africano durante uma festa organizada pela Ação Comunitária.
Dispersão na cidade grande
O Brasil é um dos únicos países do mundo em desenvolvimento a receber refugiados sem estar numa região geográfica onde eles chegam automaticamente – como foi o caso da Jordânia para os palestinos. É também extremamente urbano. “A experiência dos refugiados aqui é muito interessante”, afirma Hervé Le Guillouzic, que veio especialmente da sede do Acnur, em Genebra, para estudar a adaptação dos refugiados no Brasil, particularmente na questão da saúde.
A situação mundial mudou muito na ultima década, explica. Antes, a maioria dos refugiados se radicava em campos mais ou menos fechados – Jordânia, Síria, Quênia. As imagens dos campos transmitem desespero, mas “era muito mais fácil cuidar destas populações assim”, explica Le Guillouzic. Para lançar uma campanha de vacinação, bastava anunciar no alto-falante para estar seguro de chegar a 95% dos refugiados.
“Agora, metade dos refugiados no mundo mora nas cidades, fica bem mais complexo e caro ter acesso a eles”, diz o especialista, que já trabalhou com a ONG Médicos sem Fronteiras nos lugares mais violentos do mundo. Num contexto urbano, o refugiado, que chega sem recursos nem família, mora geralmente nas partes mais pobres. “São os vulneráveis numa população de vulneráveis”, resume Le Guillouzic.
Para o Acnur, o dilema é grande. “Nossa missão é proteger e cuidar deles, mas não dá para cuidar mais deles do que dos vizinhos na favela”, explica o médico. Esse tipo de discriminação positiva teria um efeito perverso, a rejeição por parte da população local. Quando o Acnur identificou o problema de gravidez precoce e de doenças sexualmente transmissíveis, não pôde montar uma ação específica com a população refugiada.
Texto e fotos: Lamia Oualalou
Leia a primeira parte da reportagem especial:
Brasil vira destino de refugiados do Congo e outros países
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