Até agora, o presidente
Barack Obama estava atravessando os seus primeiros 100 dias na Casa
Branca sem problemas. Nunca um presidente norte-americano havia
conseguido semelhante proeza e diversos jornalistas já tinham
preparados enormes análises assinalando o fato para serem publicadas
na próxima semana.
Mas esse estado de graça
foi abalado quando saíram à tona quatro importantes memorandos, que
revelam pormenores sobre a realização de torturas contra os presos
no Iraque e Afeganistão. A revelação provocou uma polêmica
nacional de extraordinárias proporções.
A controvérsia
engrossou quando Obama afirmou que não se deve levar ante os
tribunais aqueles que praticaram tortura quando autorizados por seus
superiores. A maioria dos episódios de tortura foi liderada por
paramilitares da CIA (agência central de inteligência dos Estados
Unidos), mas também teve a participação de soldados.
Este posicionamento
acabou provocando uma divisão no seu próprio partido, o que pode
atrapalhar a aprovação no Congresso das propostas de reformas
econômicas e financeiras de Obama.
A polêmica tem duas
grandes avenidas. Por um lado, se as torturas foram autorizadas pela
Casa Branca, na época no comando de George W. Bush e, por outro,
quem deve ser julgado por ter violado leis dos Estados Unidos.
A primeira decisão que
Obama tomou quando assumiu a presidência em janeiro foi banir a
tortura de sua administração e anunciar graves sanções para quem
violasse essa ordem.
Os memorandos da CIA que
vieram a público expõem o processo de decisão da administração
anterior e descrevem as posições e opiniões de alguns de seus
protagonistas. Mas também revelam que as torturas em quase nada
contribuíram para a revelação da verdade e não tiveram resultados
positivos.
Um deles, em particular,
afirma que a Joint Personnel Recovery Agency, que levou a cabo a
análise dos interrogatórios, advertiu o Pentágono de que as
“confissões” sobre tortura seriam pouco verossímeis.
Dick Cheney
A divulgação dos
memorandos levou o ex vice-presidente, Dick Cheney, a sair do
anonimato e exigir que a Casa Branca revelasse outros memorandos, de
cuja existência ele tinha conhecimento, e que apontavam conclusões
mais positivas. Até o momento isso ainda não aconteceu.
“Se a administração
atual não obriga a CIA a revelar o resto [dos memorandos], está
claramente dizendo que tem uma posição parcial neste assunto e uma
intenção deliberada de prejudicar [o governo de Bush]”, disse
Cheney.
Os memorandos parecem
acusar funcionários superiores da administração Bush, como o
próprio ex-presidente, o vice Cheney, a então secretária de
Segurança Nacional e mais tarde secretária de Estado, Condoleezza
Rice, assim como o então diretor da CIA, George Tenet.
Afogamento
Nos memorandos consta a
prática chamada de “tortura da água”, na qual se faz o
torturado pensar que morrerá por afogamento, ao ter a cabeça
introduzida num barril cheio de água ou colocada debaixo de uma
torneira aberta.
A primeira vez que se
falou deste método foi em 2002, quando o então advogado da Casa
Branca e mais tarde secretário de Justiça, Alberto Gonzales,
desenhou o mecanismo legal que autorizou as torturas. Mas Gonzales
nunca justificou legalmente a forma como os interrogatórios deviam
ser feitos e por isso está fora da polêmica.
Nessa época, a Casa
Branca comunicou o conteúdo desse mecanismo ao Comitê de
Inteligência da Câmara de Deputados que, aparentemente, não
levantou objeções.
Pelo menos, é o que diz
John Boehner, o líder da minoria republicana na Câmara. “Ninguém
disse nada, ninguém protestou, ninguém contestou, ninguém levantou
objeção alguma ao que nos foi apresentado”, afirmou o deputado.
Mas os democratas
afirmam que a CIA nunca disse que a tortura já estava sendo aplicada
e, portanto, não havia nada a ser avaliado. “Nunca ninguém me
explicou isso”, defendeu-se Pelosi, ao explicar que não tinha
idéia que a “tortura da água” já estava sendo aplicada quando
o comitê se reuniu com a CIA.
A divergência entre
republicanos e democratas sobre este tema era previsível. Dizem os
primeiros que a divulgação dos memorandos pode revelar segredos
norte-americanos a inimigos dos Estados Unidos, como a rede
terrorista Al Qaeda.
Mas, a surpresa foi quando
os próprios democratas começaram a resmungar pelos cantos e cada um
com sua opinião.
Comissão bipartidária
Com o argumento de que
“precisamos seguir em frente não olhar para trás”, Obama propôs
a criação de uma comissão dos dois partidos, para discernir as
responsabilidades nas torturas, entre os que as ordenaram e quem as
executou.
A proposta surgiu quando a
divulgação dos memorandos provocou uma onda de revolta na opinião
pública, favorável a uma profunda investigação, inclusive na
figura de setores menos esperados, como é o caso de Meghan McCain,
filha do ex-candidato presidencial republicano, John McCain.
Meghan, que se
transformou numa das comentaristas republicanas mais publicadas e
escutadas nos Estados Unidos, desde que no mês passado desafiou os
barões do partido a aceitarem a presença na entidade de gente como
ela, que aceita o casamento entre homossexuais, contra a direita
religiosa ultra-reacionária, disse na quinta feira que também se opõem à
tortura, como seu pai.
“Por causa das torturas
que sofreu durante a sua prisão no Vietnã, meu pai nunca pôde me
colocar em seu colo. Serei sempre contra as torturas”, disse Mehgan
no programa “The View”, da rede ABC.
Com a criação da
comissão bipartidária, Obama pretende que o Congresso não se
entretenha com o assunto e desvie a atenção de seus planos de
governo. Mas ao mesmo tempo, deixou nas mãos de seu secretário de
Justiça, Eric Holder, a decisão final sobre que membros da
administração Bush processar. Holder já disse que não se deve
levar antes os tribunais nenhum membro da administração anterior.
Divisão
Nancy Pelosi não está de
acordo e, assim, instalou-se a divisão no partido democrata. Ela
acha que o Congresso deve abrir uma “ampla” investigação. “As
responsabilidades devem ir até ao final. Temos de saber se eles [a
CIA] mentiram para nós”, afirmou a presidente da Câmara de
Deputados.
Ante esta pressão, Obama
parece estar cedendo, e seu porta-voz, Bob Gibbs, afirmou na quinta feira que o
presidente agora acha que deve se investigar “até ao fim” um dos
momentos mais negros “de nossa história”.
Também não tinha
outra opção, porque de acordo com a convenção das Nações Unidas
sobre a tortura, a Casa Branca – se tem boas intenções – não
tem outra alternativa que processar pelo menos os advogados da
administração Bush ,que justificaram legalmente os maus tratos,
desenhando mecanismos que ultrapassavam a convenção. O caso mais
claro, dizem os especialistas, foi considerar a “tortura do sono”
como sendo tortura apenas se era praticada por mais de 11 horas
seguidas.
“Isso é exatamente o
que chamo de cumplicidade ou participação na tortura tal como
define a convenção”, afirmou Manfred Nowak, o enviado especial da
ONU para o cumprimento da convenção contra a tortura.
Para isso, os Estados
Unidos devem nomear uma comissão independente do Congresso, como
única forma de chegar ao fundo da questão, acrescentou Nowak, quem
se opõem diretamente à absolvição de culpa dos agentes da CIA,
por parte de Obama.
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