'Scania deve desculpas e indenização por apoio à ditadura brasileira', diz representante de acionistas alemães
Christian Russau disse que Scania organizou e entregou lista de funcionários para órgãos de repressão do regime militar
A montadora Scania da Alemanha, empresa do Grupo Traton da Volkswagen, precisa pedir desculpas públicas e indenizar, de forma coletiva ou individual, os funcionários que ela ajudou a perseguir junto com os órgãos repressores da ditadura militar brasileira (1964-1985). Essa é a avaliação de Christian Russau, membro da Associação dos Acionistas Críticos da Alemanha.
Em entrevista a Opera Mundi, Russau contou que participou ativamente do primeiro processo que levou a Volks a indenizar, em R$ 36 milhões, os trabalhadores vítimas das relações entre a empresa e os militares. Agora, o foco será a Scania, presidida na época por João Batista de Leopoldo Figueiredo, um dos que participaram da arrecadação para a criação da Operação Bandeirantes (OBAN), o centro de tortura que sequestrou, torturou e assassinou centenas de pessoas.
‘Nós estaremos lá para exigir esclarecimentos e receber respostas’, afirmou Russau, que atualmente vive em Berlim, é jornalista e autor de Empresas Alemãs no Brasil: o 7 x 1 na economia, que mostra uma série de ilegalidades do setor privado alemão no Brasil, entre elas, a colaboração com a ditadura militar brasileira.
Confira a entrevista de Opera Mundi com Christian Russau:
Opera Mundi: Christian, como começa essa investigação relativa à Scania?
Durante anos, eu trabalhei no caso do envolvimento da Volkswagen com a ditadura militar brasileira que levou ao pagamento de uma indenização pela empresa às vítimas no Brasil. No começo desse processo, nós já havíamos notado a participação da Scania, hoje parte do Grupo Volkswagen.
Naquela época, o historiador Manfred Grieger, que comandava os trabalhos de investigação da Volkswagen e que depois foi demitido pela empresa, apontava que incluiria a Scania, mas ele recomendou iniciarmos com as investigações sobre a Volks e, em seguida, a Scania. Foi o que fizemos, mas a ideia surgiu já no começo.
Eu me concentrei durante anos no caso da Volkswagen e o da Scania ficou em aberto. No ano passado, nós decidimos retomar essa ideia. Em meados de maio, durante a assembleia dos acionistas do Grupo Traton, nós exigimos esclarecimentos sobre o passado e a colaboração da Scania no Brasil com a ditadura militar brasileira.
Em quais alegações vocês se basearam?
Os fatos estão públicos na internet e se referem à espionagem dos trabalhadores da Scania. Da mesma forma que a Volkswagen e outros grupos, a Scania também estava interligada no esquema de vigilância dos trabalhadores durante a ditadura e passava listas com o nome de seus funcionários para os órgãos de repressão. Outro ponto é a questão das demissões desses trabalhadores, entre 1978 e 1980, quando aconteceram as graves do ABC.
Um terceiro ponto é que o presidente da Scania do Brasil na época, o João Batista de Leopoldo Figueiredo, é mencionado no artigo O elo da Fiesp com o Porão da Ditadura, publicado em O Globo, em 9 de março de 2013, como participante das vaquinhas para o DOI-Codi. Vários empresários se reuniram em São Paulo e fizeram vaquinhas para a criação da Operação Bandeirantes (OBAN), mais tarde chamada de DOI-Codi. Leopoldo Figueiredo, primo do general Figueiredo, participou dessa reunião e também deu dinheiro.
Antes de ser presidente da Scania, ele foi, durante muitos anos, presidente da Câmara de Indústria e Comércio Brasil-Alemanha, além de membro do Conselho Fiscal da Volkswagen. O ponto central é que ele estava na presidência da Scania na época em que a ditadura recebeu as colaborações. Nós queremos esclarecimentos sobre isso.
Nós apresentamos esses pontos durante a assembleia de acionistas da Volkswagen, no ano passado, e presidente do Conselho de Supervisão da TRATON, Hans Dieter Pötsch, que também preside o Conselho de Administração da Volkswagen, respondeu que eles não estavam sabendo nada disso, mas que iriam pesquisar.
No próximo dia 14 de maio, acontece a nova assembleia de acionistas da empresa e nós estaremos lá para exigir esclarecimentos e receber respostas. Demos a eles um ano e agora queremos respostas.

Alessandra Haro / Memorial da Resistência
Quem está à frente dessa cobrança dentro da empresa?
A Associação de Acionistas Críticos da Alemanha, sediada em Colônia. É uma associação sem fins lucrativos e eu estou na diretoria desde 2014. Enquanto associação, nós compramos as ações da empresa e participamos de sua assembleia, como acionistas, com direito de votar uma contra moção em seu balanço fiscal anual.
A empresa fica obrigada a publicar essa contra moção, antes da assembleia de acionistas, em sua página do site e juntamente ao anúncio da assembleia. Nós fazemos isso, geralmente, com as grandes empresas e algumas traduzem a contra moção para o inglês, o que chama a atenção.
A Scania, em sua origem, é uma empresa da Suécia. Há décadas, ela tem uma subsidiária no Brasil que produz caminhões. No ano 2000, a Volkswagen começou a comprá-la. A Traton, que é uma reunião das empresas da Volkswagen do setor de caminhões, é dona da Scania. Ela é uma empresa de capital aberto e por isso nós tivemos a opção de comprar sua ação na bolsa. A Volkswagen é responsável por 89% do controle da Traton, que é dona da Scania.
Como começam as investigações envolvendo a Volks com a ditadura militar?
Entre 2014 e 2015, a nossa associação e mais 20 entidades e organizações alemãs que trabalham com o tema Brasil, organizamos uma série de eventos sobre os 50 anos do golpe militar brasileiro. Ali, eu me concentrei na questão da Volkswagen na ditadura militar.
Durante aquele período, a Volkswagen era a maior empresa da América Latina. Nós sabíamos que havia colaboração e queríamos detalhes sobre isso. Havia alguns relatórios e várias pesquisas, então eu conheci o Lúcio Bellentani, que trabalhou como metalúrgico na Volkswagen do Brasil e chegou a ser torturado dentro do local de trabalho, sendo depois levado ao DOPS, onde sofreu mais torturas.
Isso aconteceu em 2014, antes do relatório da Comissão Nacional da Verdade. Então, muitas informações chegaram mais tarde. Opera Mundi, inclusive, fez uma matéria na época contando sobre o caso e exigindo esclarecimentos sobre os fatos históricos da colaboração Volkswagen e ditadura. Semanas depois, o historiado oficial da empresa, Manfred Grieger, me contatou eu disse a ele que estava na hora, também, de pesquisar o caso Scania, e aí ele recomendou aguardar.
Como aconteceu a denúncia?
Em 2015, o Fórum de Trabalhadores por Verdade, Justiça e Reparação, com os trabalhadores e várias entidades, fizeram uma denúncia oficial contra a Volkswagen no Ministério Público, com um enorme respaldo midiático na Alemanha.
A denúncia foi feita poucos dias após vir à tona o escândalo da manipulação dos motores da Volkswagen nos Estados Unidos, em setembro de 2015. Foi uma coincidência histórica, mas como a Volks já estava na mídia, quase todas as reportagens na época divulgaram que além deste escândalo, havia a questão da colaboração da empresa com a ditadura brasileira.
Pouco depois, quando Grieger entregou a pesquisa, os trabalhadores não ficaram satisfeitos. Então, ele foi demitido e contratado pela Volks, o historiador Christopher Kopper, que entregaria o seu relatório em 2019. Nesse período, ano após anos, nós participamos e pressionamos na assembleia de acionistas, exigindo que o tema fosse tratado e foram feitas reportagens e documentários na tevê alemã sobre essa questão.
O caso andou e o Lúcio Bellentani veio para a Alemanha em 2017. Nós organizamos palestras com ele, mas, infelizmente, ele faleceu sem ver o resultado. Em 2019, saiu o relatório do Kopper e, no final de 2020, a Volkswagen concordou com pagamento da indenização, no valor de R$ 36 milhões, contemplando indenizações individuais e coletivas. Uma parte desse dinheiro foi destinada à pesquisa sobre a colaboração de outras empresas e órgãos internacionais no Brasil com a ditadura militar.
Isso ainda está em andamento.

Acervo Pessoal
Como vocês conseguiram essa indenização? Podemos ter a expectativa de uma solução semelhante no caso da Scania?
Conseguimos porque a Volkswagen era responsável. Nós sempre soubemos que estávamos certos, mas até hoje, eu não sei te dizer como conseguimos. Se foi a necessidade da empresa de limpar o seu nome frente à pressão da mídia, ou se porque realmente eles se sentiram mal.
É importante destacar que as empresas alemãs têm outra estrutura de poder. A Volkswagen tem forte presença dos sindicatos em sua diretoria e conselho de administração, e o estado da Baixa Saxônica tem 20% da empresa. Não sabemos também o quanto a política interferiu. E não houve nenhum juízo dentro de um processo. Tudo foi por um acordo judicial entre a empresa e o Ministério Público, as vítimas e familiares dos trabalhadores.
Em relação à Scania, ela tem essa responsabilidade histórica e isso envolve a Volkswagen, majoritariamente proprietária da Traton, que é dona da empesa. Esse processo também precisa terminar com um esclarecimento, um pedido público de desculpas e com o pagamento de indenizações, coletivas ou individuais.
Como avalia esse esforço de trazer a verdade histórica à nota. E em particular neste momento?
Nosso papel é o de impulsionar as investigações para que algo aconteça a partir daí. É fundamental esclarecer, analisar e aprender com as lições da história para proteger e salvar a democracia. Quando aprendemos com o passado, nós não cometemos os mesmos erros e não corremos os mesmos riscos da democracia perder para as forças mais reacionárias, que existem em todas as sociedades do mundo.
No Brasil, especificamente, após o governo Bolsonaro, houve tentativas de golpe do movimento bolsonarista e agora há a discussão de uma anistia para esses golpistas. Isso está errado. É preciso saber quem são os responsáveis para julgá-los.
A mesma coisa se refere à colaboração das empresas e do empresariado com a ditadura militar. Estamos falando de 60 anos atrás, a maioria das pessoas não está mais viva. Nós temos que nos ater aos fatos para que a sociedade aprenda com isso e para que a democracia seja protegida e permaneça viva.
E os próximos passos?
Do dia 14 de maio, nós temos a assembleia da Traton e vamos tratar essa questão da Scania. Há também uma moção que fizemos contra a diretoria da Volkswagen sobre o trabalho escravo em uma fazenda da empresa, na época da ditadura, na Amazônia brasileira. E vamos cobrar sobre a questão.
Já houve três reuniões entre o Ministério Público e a Volkswagen sobre a questão do trabalho escravo na fazenda Vale do Rio Cristalino e ano passado a Volks decidiu, unilateralmente, sair desse processo.
Em dezembro de 2024, o Ministério Público fez uma denúncia formal para encaminhar esse processo contra a Volks, e a primeira audiência acontecerá no dia 29 de maio, na cidade de Redenção, na Amazônia. A Volkswagen estará presente e terá que esclarecer por que saiu desse processo no meio das negociações.
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