'Se coalizão parar, há perigo real do Estado Islâmico retornar', afirma comandante-chefe da YPJ
Rohilat Afrin, da Unidade de Proteção das Mulheres no Curdistão Sírio, alerta para crescimento de ataques do ISIS em meio à instabilidade na Síria
Nas últimas semanas, o Estado Islâmico voltou a protagonizar ataques em território sírio.
No domingo, 1º de junho, três combatentes das Forças Democráticas Sírias (SDF) foram mortos em um ataque do ISIS na rodovia Abyad Abyad, no Curdistão Sírio. Outros dois ataques foram reivindicados pelo grupo na última semana de maio, sendo o primeiro deles, em 22 de maio, considerado a primeira ofensiva contra o exército do novo governo sírio instaurado após a queda de Bashar al-Assad em dezembro de 2024.
Para a comandante-chefe das YPJ (Unidades de Proteção das Mulheres) do Curdistão Sírio, Rohilat Afrin, esses eventos não são pontuais, mas parte da rearticulação do grupo jihadista. “Se a coordenação da coalizão parar, há um perigo real de que o Estado Islâmico retorne”, afirmou Afrin à reportagem de Opera Mundi. “Estamos vivendo em um território que não é seguro o suficiente. Precisamos da coalizão aqui.”
Rohilat se refere às Forças Democráticas Sírias (SDF, na sigla em inglês), uma coalizão militar formada em 2015 com o apoio dos Estados Unidos, no auge da luta contra o Estado Islâmico. Lideradas pelos curdos, as SDF reúnem diversos grupos de orientação progressista e multiétnica – incluindo combatentes curdos, árabes e assírios – e funcionam como o braço armado oficial da Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria (AANES), também conhecida como Rojava ou Curdistão Sírio. Desde 2012, a AANES administra de forma autônoma o território de maioria curda no norte e leste da Síria.

Rami Hussein
Dentro das SDF, destacam-se as Unidades de Proteção Popular (YPG) e as Unidades de Proteção das Mulheres (YPJ) – estas últimas compostas exclusivamente por combatentes mulheres. Ambas desempenharam um papel central na luta contra o Estado Islâmico, especialmente entre 2013 e 2017, período em que o grupo jihadista controlou vastas áreas no Curdistão Sírio e fez de Raqqa a capital de seu autoproclamado Califado.
A reportagem de Opera Mundi esteve em Raqqa, onde conversou com Omar, um ex-prisioneiro do grupo jihadista. Aos 38 anos, natural da própria cidade, ele relembra os sete meses de cárcere e as diversas torturas sofridas.
“Fui preso porque eles me acusaram de ser um agente da coalizão (SDF)”, conta. “Para os meus pais, disseram que eu havia sido morto.”
Omar levou a reportagem até o primeiro local onde ficou detido: uma antiga academia subterrânea convertida em prisão improvisada, que os moradores passaram a chamar de “prisão dos espelhos”, por ainda preservar partes dos espelhos nas paredes. Ele ficou ali por dois meses, vendado e isolado, antes de ser transferido para outra instalação.
“Colocavam uma venda nos meus olhos e atiravam para o alto, como se fossem me executar a qualquer momento”, relata. “Era um jogo. Você não sabia se o próximo tiro seria o último.”
Embora tenha sido derrotado territorialmente em 2019, o Estado Islâmico manteve uma rede de células adormecidas, sobretudo nas regiões desérticas do centro e leste da Síria. Agora, esses focos de radicalismo voltam a ganhar força em meio ao novo cenário de instabilidade após a queda de Bashar al-Assad. A derrubada do regime foi liderada por uma coalizão de milícias sob o comando do Hayat Tahrir al-Sham (HTS) – grupo que foi aliado do Estado Islâmico nos estágios iniciais da guerra civil síria, e agora busca se reposicionar política e ideologicamente, adotando uma imagem mais “moderada” diante da comunidade internacional.
A comandante-chefe das YPJ explicou à reportagem de Opera Mundi que o vácuo institucional e a instabilidade em diversas partes da Síria nesse momento são terreno fértil para a reativação do grupo extremista. ‘’O ISIS está usando essa ausência (de controle institucional) para se reorganizar’’, afirmou.
Segundo Rohlat, há atualmente milhares de ex-membros do ISIS presos em território curdo, além de dois campos – Al-Hol e Roj – que abrigam famílias, mulheres e crianças dos combatentes, muitos deles estrangeiros. “Essas pessoas vivem oficialmente em nossa terra. Mas não são apenas sírios. Eles vêm de todo o mundo’’, relatou.
A reportagem de Opera Mundi teve acesso ao campo de Al-Hol, no Curdistão Sírio, onde vivem atualmente cerca de 32 mil pessoas – das quais aproximadamente 20 mil são crianças e adolescentes. O campo foi originalmente criado em 1991, durante a Guerra do Golfo, para abrigar refugiados que fugiam da invasão iraquiana ao Kuwait. No entanto, sua função e composição mudaram após a ascensão e queda do Estado Islâmico.

Rami Hussein
Desde 2016, Al-Hol passou a ser administrado pelas forças curdas da Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria (AANES). Foi nesse momento que o campo começou a receber familiares de combatentes do ISIS, majoritariamente mulheres e crianças de diversas nacionalidades. No auge da sua lotação, em 2019, o campo chegou a abrigar mais de 73 mil pessoas, refletindo o colapso do califado territorial e a ausência de respostas coordenadas da comunidade internacional.
Hoje, os campos de Al-Hol e Roj representam um dos maiores desafios à administração curda, ao lado dos recentes ataques perpetrados por células do Estado Islâmico. Apesar dos alertas feitos por autoridades locais, muitos países de origem dessas mulheres e crianças resistem à sua repatriação.
Entre as 42 nacionalidades presentes nos campos está também o Brasil. A brasileira Karina Aylin Raiol Barbosa, de 28 anos, esteve em Roj com seu filho de 6 anos, após ter viajado para a Síria nos anos de ascensão do Estado Islâmico, atraída pela propaganda jihadista que circulava nas redes sociais durante o auge do califado. Em dezembro de 2024, jornalistas brasileiros tentaram localizá-la no campo, sem sucesso.
A reportagem de Opera Mundi também questionou o paradeiro de Karina à Jihad, funcionária da administração curda do campo de Al-Hol. Ela explicou que não poderia localizar Karina já que o banco de dados do campo é extremamente impreciso – principalmente porque muitas mulheres recusam-se a revelar sua verdadeira identidade.
Outro fator que dificulta a identificação é o uso dos trajes tradicionais islâmicos, como o niqab e a abaya, que cobrem integralmente o corpo e, em muitos casos, até os olhos. Como a administração depende da cooperação das próprias detentas para sua identificação, muitas delas permanecem invisíveis às autoridades.
