As diferenças de visão sobre a política externa entre os campos da esquerda e da direita, no caso brasileiro, sempre foram mais sutis do que em outros países, defende o historiador Matias Spektor, do CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação) da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro. Ambas aderiram à teoria da dependência, perceberam influências externas sobre a economia nacional e sobre a Amazônia como imperialistas e privilegiaram a cultura local em detrimento de importações. Mesmo na época do regime militar, buscou-se um desenvolvimento autônomo, fundamentado no capital nacional – inclusive quando em aliança com o capital estrangeiro. As tênues linhas que separam a diplomacia de um lado e de outro são mostradas por Spektor nesta segunda parte da entrevista ao Opera Mundi.
Qual foi a grande diferença entre a esquerda e a direita brasileiras em relação à percepção dos EUA e da ordem ocidental liberal?
Foi muito marginal. Nem a ditadura brasileira, nem o governo de Fernando Henrique Cardoso durante a década 1990 eram liberais. Certamente, houve uma pequena guinada liberal após o fim da ditadura: o Brasil virou uma democracia, a tarifa básica de importação baixou, o Brasil aderiu a normas de internacionais de direitos humanos, de não-proliferação nuclear, a tratados ambientais. Mas, se comparar o Brasil ao México, à Argentina, ao Chile, à Austrália, à África do Sul, à Turquia, e mesmo à Índia em alguns aspectos, vê-se que o país aderiu às regras liberais muito lentamente, parcialmente, e de maneira negociada.
Inclusive durante a década de 1990, apresentada como neoliberal, o Brasil manteve Petrobras, o Banco do Brasil e o BNDES. Até as estatais privatizadas continuam com uma grande conexão com o setor público. O Brasil não é uma economia amplamente aberta, já que somente uma parte mínima de seu PIB é o resultado do comércio internacional. Do ponto de vista cultural, é a mesma situação: apesar de Hollywood, o que move as massas do país é a cultura local.
As massas gostam da cultura local, mas a elite prefere Miami?
Não é bem assim. A elite brasileira, curiosamente, é diferente da elite mexicana, argentina ou chilena. Aqui, a elite curte carnaval. É um grupo de empresários nacionais que quer proteção. É uma elite que vai a Miami para comprar um iPod, mas que prefere morar aqui. Também é uma elite pouco internacionalizada, que não fala inglês, e não manda os filhos para estudar em escola na Suíça. Enfim, é uma elite muito voltada para dentro.
Esta característica se explica pelo tamanho do país?
Sim, pelo tamanho do país e, sobretudo, pelo fato de que as capitais de estado mais próximas às fronteiras, com exceção de Rio Branco, ficarem a mais de 1000 quilômetros dos vizinhos. O Brasil é naturalmente voltado para dentro, como os EUA. Mas, diferentemente dos EUA, nunca teve grandes responsabilidades internacionais. A última vez que o Brasil foi à guerra contra um vizinho já tem 140 anos. Não existe outra nação no mundo e na historia da humanidade, que, com dez vizinhos, não vai à guerra em 140 anos.
Para resumir, nada forçou o Brasil a olhar muito para fora, apesar de estar fundamentalmente imbricado na economia internacional. O Brasil é um dos dois países que têm como nome uma matéria-prima de exportação: o pau-brasil (o outro é a Costa do Marfim). Mas, na cabeça da elite política local, o que funciona bem é certo distanciamento, é fazer as coisas à maneira brasileira. Eu sempre fico impressionado quando vejo meus alunos na FGV – que são da elite, falam inglês e passaram um tempo fora do país – convencidos de que os EUA têm interesse na Amazônia.
Como o senhor explica esta preocupação com a Amazônia, que às vezes aparece aos olhares estrangeiros como uma paranoia?
Acho que parte da preocupação com Amazônia tem a ver com uma história brasileira de sentir que as grandes potências mitigaram e dificultaram a trajetória do Brasil. Nós tivemos presença portuguesa, francesa, espanhola e holandesa e ficamos com a sensação de uma exploração. Os acordos comerciais assinados em 1808 com a Inglaterra, quando a corte portuguesa se mudou para o Rio de Janeiro, passaram progressivamente a ser vistos como desiguais, e foram denunciados a partir de 1844. Houve também uma grande resistência à política anti-escravocrata da marinha inglesa que começou a pressionar o Brasil e a ameaçar afundar navios negreiros. O Brasil teve de fazer uma legislação limitando o comércio escravagista com a África – que não foi respeitada na prática – mas a intervenção dos britânicos foi identificada como imperialista.
Esta percepção de que o objetivo das grandes potências é minar o Brasil se manteve após o fim se Império e o estabelecimento da República?
Sim, totalmente. Primária no começo, como neste caso do comércio negreiro, depois ela ganha, no século passado, um estatuto intelectual muito mais sofisticado com a teoria da dependência. Segundo esta linha de pensamento, que foi forte em toda a América Latina, existe um centro e uma periferia, e o centro sempre acaba reproduzindo dinâmicas que buscam manter os países periféricos na periferia. Nessa lógica, quando um país periférico consegue quebrar a casca e começar a ascender, o centro se preocupa e tenta botá-lo no seu lugar.
É a teoria desenvolvida por muitos economistas da Cepal, e por isso, identificada com a esquerda. A direita brasileira também a cooptou?
Foi também a teoria da ditadura militar, que, como já expliquei, não foi liberal. Diferentemente dos regimes militares na Argentina e no Chile, a ditadura brasileira não foi privatista. Ao contrário: expandiu o setor publico, comprou brigas com os EUA, fechou o país para privilegiar um projeto de desenvolvimento nacional amplamente financiado por capitais nacionais. Certamente tinha também capitais norte-americanos, mas com regras muito peculiares. Podia ter Coca-Cola, e Fiat, mas com associação com capitais brasileiros: era Coca-Cola do Brasil, Fiat do Brasil. Eles montaram um esquema para desenvolver um país periférico, anticomunista, mas não dentro da ordem liberal, e sim nas margens do liberalismo. A interpretação dominante sempre foi essa, e eu chegaria a dizer: continua sendo. E diria mais: inclusive durante o governo de FHC. Não vejo do ponto de vista conceitual diferença com o Lula.
Mas a política externa do governo brasileiro hoje é muito mais dedicada às relações Sul-Sul.
Mas não é uma ruptura, nem uma invenção do Lula. A ideia original de criar um G20 para negociar com mais força é anterior. A decisão de negociar duramente na OMC (Organização Mundial de Comércio) é do começo dos anos 2000. Eu acho que esta mudança não tem a ver com FHC ou Lula. Tem a ver com o sistema internacional, que ficou mais duro. Governar na época do Clinton, com discursos de paz e a economia bombando, é uma coisa. Governar na década 2000, após os atentados do 11 de Setembro, com Bush, é outra coisa. E isso provocou uma mudança na política brasileira. Se alguém pegar o discurso de FHC no México, verá que é um discurso muito liberal. Aquele na Índia, dois anos depois, é um discurso muito mais voltado para o Sul, que podia ser do Lula. Eu não acho que tenha a ver com a ideologia deles.
Isso quer dizer que o senhor considera a política externa de FHC e a do Lula semelhantes?
Não. Existe uma grande diferença entre os dois homens em relação à visão do mundo. Para FHC, o sistema capitalista é cruel, o mundo é hostil, mas a pior coisa que pode acontecer com o Brasil é ficar fora dele. Há pouco que o Brasil possa fazer a não ser se adaptar. Com Lula, o sistema capitalista é cruel, o mundo é hostil, e a pior coisa que pode acontecer com o Brasil também é ficar fora dele. A diferença é que Lula e sua equipe olham para o mundo e veem oportunidades para fazer coisas. Antes, existia uma interpretação segundo a qual não havia muita opção a não ser adaptar-se. Agora, a gente também se adapta, mas a percepção das possibilidades de adaptações é maior.
Então há uma leitura positiva do sistema internacional. É um sistema que, apesar de ser ruim, é suficientemente benigno para que o Brasil possa ter uma política internacional criativa. Para isso, o governo se beneficiou do talento do Lula, que é muito hábil, e que se deu muito bem com a virada do mundo. Ele também foi ajudado por algumas pessoas-chave, como Samuel Pinheiro Guimarães e Celso Amorim. Eles representam este ativismo, esta ideia de que dá para fazer coisas, e isso casa muito bem com o ideário do presidente. Para resumir, tendo em vista que o mundo é esta “porcaria”, o que podemos fazer? O FHC e os seus dizem muito pouco. O Lula e sua equipe dizem que dá para fazer muito. É uma aposta que deu certo.
Leia a primeira parte:
Desconfiança entre Brasil e EUA sempre impediu parcerias de longo prazo, diz historiador
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