A queda na demanda e a alteração nos preços do barril de petróleo por conta da pandemia do novo coronavírus deve levar a uma nova correlação de forças entre as potências mundiais. Essa é a opinião de William Nozaki, cientistas político e diretor do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).
Em entrevista exclusiva a Opera Mundi, Nozaki constata que os efeitos da pandemia no setor petroleiro, como a crise “de proporções históricas” na demanda, colocam países produtores, como os EUA, “em condições difíceis”, enquanto nações como a China são vistas com otimismo “sobre a melhora do setor”.
“Enquanto países consumidores como China e Índia investem em infraestrutura de armazenagem e financiam a estocagem de óleo e derivados, países produtores como EUA e Rússia sofrem com as limitações de seus tanques e dutos”, afirma o especialista.
De acordo com Nozaki, “os Estados e as empresas já estão ajustando as suas estratégias para o próximo período, uma nova correlação de forças e uma reestruturação patrimonial devem acontecer no período pós-pandemia”.
Sobre ameaças à hegemonia norte-americana e uma ultrapassagem da China no cenário global, o diretor do INEEP acredita que “os EUA não ocupam mais o papel internacional de guardiães do mercado globalizado e dos valores democráticos”, enquanto a “China emerge como epicentro de um modelo baseado na articulação entre planejamento estatal e crescimento industrial”.
“Em meio à pandemia, a mensagem de Trump para o mundo foi a reafirmação do ‘America First’, ao passo que a mensagem de Xi Jinping foi ‘somos ondas do mesmo mar’; enquanto o primeiro fecha fronteiras, o segundo reinaugura a Nova Rota da Seda. Uma mudança dessa monta é um processo de longuíssima duração e que só acontece em meio a ações, reações, tensões e conflitos”, disse Nozaki.
Sobre o papel da América Latina nesse cenário, o especialista afirma que o “continente americano e o Atlântico são pontos estratégicos para a geopolítica do petróleo” e que a região “é um tabuleiro fundamental para a geopolítica do petróleo no século XXI”.
Leia a entrevista na íntegra:
Opera Mundi: Como a pandemia afetou a correlação de forças na distribuição do petróleo a nível global?
William Nozaki: A pandemia diminuiu significativamente o fluxo de mercadorias e pessoas, provocando uma redução na demanda por petróleo e derivados. Nos últimos meses, houve uma queda de cerca de 25 milhões de barris/dia no consumo de petróleo, ao passo que os acordos entre países e empresas só deram conta de enxugar cerca de 14 milhões de barris/dia na produção de petróleo. Esse descompasso entre oferta e demanda deixa países produtores, como EUA, em condições difíceis e deposita sobre os países consumidores, como China e Índia, as expectativas sobre a melhora do setor. Além disso, os países que tem grandes empresas petrolíferas integradas, como os do Oriente Médio, tem tido melhores condições de atravessar a tormenta do que aqueles que buscam ter empresas petrolíferas enxutas, como é o caso do Brasil atualmente.
Como avalia a crise da demanda e do armazenamento no setor?
A crise de demanda tem proporções históricas, não se sabe quanto tempo ela pode durar e nem ao certo qual serão os seus efeitos colaterais. Enquanto países consumidores como China e Índia investem em infraestrutura de armazenagem e financiam a estocagem de óleo e derivados, países produtores como EUA e Rússia sofrem com as limitações de seus tanques e dutos.
White House/Flickr
William Nozaki afirma que efeitos da pandemia no setor energético colocam EUA ‘em condições difíceis’ e depositam expectativa na China
Vimos recentemente que países sancionados, como a Venezuela, têm buscado outras alternativas para a questão do abastecimento de combustível. O governo venezuelano recebeu um grande auxílio do Irã nos últimos dias. Qual o papel da América Latina no cenário geopolítico do setor do petróleo?
O continente americano e o Atlântico são pontos estratégicos para a geopolítica do petróleo, na listas das últimas grandes descobertas e de avanços tecnológicos do setor encontram-se o óleo em areias betuminosas no Canadá, o shale gas nos EUA, o óleo em águas ultraprofundas do Brasil. Na América Latina, especificamente, além do pré-sal brasileiro, temos as grandes produções mexicanas, as expressivas reservas de petróleo venezuelanas, as relevantes produções de gás bolivianas, e novas fronteiras de exploração no perímetro da Guiana e da Amazônia, por todos esses motivos a América Latina é um tabuleiro fundamental para a geopolítica do petróleo no século XXI.
Acredita em uma reconfiguração com relação ao petróleo entre as potências mundiais após a pandemia?
A pandemia tem lançado um conjunto de incertezas sobre o segmento de petróleo e gás e sobre o setor de energia em geral. Por um lado, com a baixa do preço do petróleo há menos incentivo para a substituição dos hidrocarbonetos, por outro lado, com a pandemia há mais sensibilidade para problemas de saúde, climáticos e ambientais. Nesse ínterim, os Estados e as empresas já estão ajustando as suas estratégias para o próximo período, uma nova correlação de forças e uma reestruturação patrimonial devem acontecer no período pós-pandemia.
Como o alinhamento do Brasil com os EUA e as hostilidades contra a China por parte do governo Bolsonaro afetam a indústria do petróleo brasileira?
O alinhamento automático com os EUA e a hostilidade ideológica com a China ainda não afetaram o setor. Em função do peso geopolítico e financeiro, a indústria de petróleo costuma ser mais resiliente contra bravatas ideológicas e mais atenta para oportunidades pragmáticas. A China continua sendo uma grande compradora do petróleo brasileiro e outros derivados e segue bastante interessada na compra de alguns dos ativos que estão sendo privatizados pela Petrobras.
Como analisa o crescimento chinês e qual posição você acredita que a China assumirá após a pandemia?
A ordem internacional passa por mudanças profundas, o capitalismo ocidental está em crise e os EUA não ocupam mais o papel internacional de guardiães do mercado globalizado e dos valores democráticos, já o capitalismo oriental parece demonstrar maior pujança e a China emerge como epicentro de um modelo baseado na articulação entre planejamento estatal e crescimento industrial. Em meio à pandemia, a mensagem de Trump para o mundo foi a reafirmação do “America First”, ao passo que a mensagem de Xi Jinping foi “somos ondas do mesmo mar”; enquanto o primeiro fecha fronteiras, o segundo reinaugura a Nova Rota da Seda. Uma mudança dessa monta é um processo de longuíssima duração e que só acontece em meio a ações, reações, tensões e conflitos, por isso o que se observa hoje no cenário internacional é uma escalada militar intensa.