Quem conheceu, durante a década de 1950, o bem-sucedido criador dos pedalinhos da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, não poderia imaginar a história que estava por trás de Herberts Cukurs. Colaborador das forças nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, o letão chegou ao Brasil após conseguir um visto na embaixada brasileira em Marselha e foi assassinado em Montevidéu. Com o corpo foi encontrada a frase “aqueles que jamais esquecerão”, mensagem deixada por seus algozes, agentes do Mossad (serviço secreto israelense).
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A trajetória de Cukurs no Brasil é objeto de estudo do historiador e jornalista Bruno Leal Pastor de Carvalho, doutorando em história social pelo PPGHIS/UFRJ (Programa de Pós-Graduação em História Social). Em sua tese, defende que o caso do letão era inédito para o Brasil e que não há indícios de que as autoridades tenham favorecido Cukurs, mesmo com as críticas de várias instituições judaicas e com a pressão para que ele fosse expulso do país. Para alguns especialistas, o governo era condescendente com nazistas que viviam no Brasil.
Arquivo Pessoal
Historiador e jornalista Bruno Leal desenvolve tese sobre a vida de Cukurs no Brasil
Em entrevista a Opera Mundi, Leal conta detalhes sobre a vida de Cukurs, que chegou a receber escolta policial por temer o mesmo destino de Adolf Eichmann, capturado por judeus em 1960, na Argentina. Assim como o tenente-coronel da SS e tantos outros nazistas ou colaboradores do III Reich, Cukurs buscou refúgio na tranquila América do Sul com o fim da Segunda Guerra Mundial. Leia os principais trechos da conversa:
Opera Mundi: Qual a importância do caso de Herberts Cukurs?
Bruno Leal: Cukurs é costumeiramente colocado no mesmo saco de Josef Mengele, Franz Stangl e Gustav Wagner, mas o caso dele é diferente, não dá para classificar da mesma forma. Não há dúvidas sobre a culpa desses outros três nazistas. Cukurs é o primeiro grande caso de alegado criminoso nazista no Brasil. Foi a primeira vez que o país se viu obrigado a se posicionar e isso aconteceu em um momento que o próprio vocabulário relacionado à guerra estava em transformação. O que pensávamos sobre o que tinha sido o Holocausto em 1950 era diferente do que em 1960. O significado da palavra muda por ser uma construção histórica.
OM: E qual foi a posição do Brasil?
BL: O governo brasileiro não poderia extraditar Cukurs por não ter relação diplomática com a Letônia. O que era possível era expulsá-lo do território nacional, mas, para tomar essa decisão, precisaria estar amparado em uma base jurídica, e a medida só poderia ser adotada antes do nascimento do filho brasileiro, em 1955. Como Cukurs se dizia inocente, o Brasil precisou confirmar o caso no exterior, o que foi tentado, mas sem sucesso. Assim, o Brasil adota uma posição dupla: não aprova a naturalização de Cukurs, mas também não o expulsa, deixando o caso sempre em suspenso.
OM: O senhor diria que o Brasil protegeu Cukurs?
BL: Há os que acham que o Brasil protegeu nazistas, mas defendo a posição contrária no caso de Cukurs. O Ministério da Justiça recebeu vários pedidos de expulsão, que foram sempre negados. As comunidades judaicas pressionavam muito, impactadas pelo Holocausto. Queriam ele o mais longe possível do país, mas o tempo jurídico era diferente do exigido por eles. Além disso, os documentos mostram que a polícia brasileira sempre cuidou de perto do caso, pedindo informações para outros países e até para a Interpol.
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OM: Como era feita a proteção policial a Cukurs?
BL: Logo depois da captura de Adolf Eichmann [tenente-coronel da SS que vivia na Argentina até maio de 1960] e de seu julgamento, Cukurs ficou muito assustado e suspeitou que pudesse ser outra vítima. Então ele pediu autorização à polícia brasileira para portar armas e ter segurança especial. Dois policiais ficavam o tempo todo próximos à casa dele. E os acontecimentos posteriores mostraram que o temor dele era justificado.
Vitor Sion/Opera Mundi
OM: Como era a vida de Cukurs no Brasil? Ele viveu em situação de pobreza, por não ter tido apoio financeiro como Mengele?
BL: Segundo relatos familiares, ele chegou ao Brasil em péssimas condições financeiras, mas, aos poucos, foi melhorando. No final dos anos 1940, pode-se dizer que ele já tinha boa condição financeira: abriu uma empresa em Niterói e alugava pedalinhos, o que lhe dava uma fonte de renda minimamente segura. Com esse dinheiro, conseguiu, por exemplo, construir rapidamente sua casa. No entanto, após a acusação da Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro, em junho de 1950, o alvará dos pedalinhos não foi renovado. A partir daí, é difícil saber ao certo qual era a condição financeira de Cukurs, mas deve ter sido flutuante. Dizem que era luxuosa e tranquila, mas não acredito que tenha sido bem assim.
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OM: Cukurs colaborou para trazer outros nazistas para o Brasil?
BL: Não há indício, nada aponta para isso. Todos os relatos familiares apontam que ele tinha poucos amigos no Brasil. Também não há nada que possa comprovar uma suposta relação de amizade dele com policiais e militares brasileiros.
OM: E os protestos contra sinagogas após o anúncio de sua morte?
BL: Há alguns relatos disso. No Uruguai, de fato, sinagogas foram queimadas. Em São Paulo, houve pichações.