A Volkswagen publicou neste domingo (14/03) um anúncio nos principais jornais impressos do país reconhecendo a participação em “violações de direitos humanos” cometidas durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985).
A empresa disse que “lamenta profundamente as violações de Direitos Humanos ocorridas naquele momento histórico e se solidariza por eventuais episódios que envolveram seus ex-empregados e seus familiares”.
Opera Mundi acompanha o caso extensivamente há mais de cinco anos, quando a Comissão Nacional da Verdade (CNV) começou a investigar a participação de empresas, entre elas a Volkswagen, na repressão aos trabalhadores brasileiros. Durante os trabalhos da CNV, diversos casos de participação de grandes empresas na repressão foram tornados públicos. Esses casos foram apontados no relatório final da CNV, que identificou a atuação de grandes empresas multinacionais no golpe de Estado de 1964 e na organização dos órgãos repressivos.
Em 2018, o ex-funcionário da montadora Lúcio Bellentani (1944-2019) concedeu uma entrevista a Opera Mundi em que detalhou o caso de tortura que sofreu dentro da fábrica da Volks em São Bernardo do Campo na década de 1970.
Além disso, a própria montadora, após pressão de acionistas alemães, tornada pública no por Opera Mundi, e das vítimas da ditadura, iniciou uma investigação interna que concluiu que a montadora colaborou ativamente com o regime militar, com “lealdade” da empresa para com os militares.
Indenização a perseguidos pela Volks
Ainda na nota publicada neste domingo (que pode ser lida ao final da matéria), a empresa mencionou um acordo anunciado em 2020, que prevê indenização aos ex-funcionários perseguidos, e disse que “apoiará projetos destinados à promoção de memória e verdade em relação a violações aos Direitos Humanos”.
Em setembro do ano passado, a montadora anunciou um acordo para pagar cerca de R$ 36 milhões em indenizações a mais de 60 ex-funcionários perseguidos pela empresa durante a ditadura.
À época, a Volkswagen confirmou a informação a Opera Mundi e disse que R$ 10,5 milhões serão destinados a “projetos de promoção da memória e da verdade em relação às violações de direitos humanos ocorridas no Brasil durante a ditadura militar”, enquanto R$ 16,8 milhões irão para a Associação dos Trabalhadores da Volkswagen – Associação Henrich Plagge.
“A maior parte dessa verba será destinada a ex-trabalhadores da Volkswagen do Brasil – ou seus sucessores legais – que manifestaram terem sofrido violações de direitos humanos durante a ditadura”, disse a empresa à reportagem.
Na nota deste domingo, a montadora classificou o acordo como “sem precedentes no país” e disse reconhecer “que é responsabilidade comum de todos os agentes econômicos e da sociedade respeitar e promover os Direitos Humanos”.
Entretanto, para o IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas), grupo que reúne educadores e formadores da educação popular, acadêmicos, sindicalistas de diferentes categorias e gestores de políticas públicas, o acordo feito pela Volkswagen do Brasil está “aquém do que foi negociado nos últimos cinco anos” e é uma tentativa “rasa e distorcida” de fazer uma retratação.
“O acordo firmado está aquém do que foi negociado nos últimos cinco anos e corre o risco de rebaixar o parâmetro das reparações que serão exigidas em novas inciativas de responsabilização de empresas que cometeram graves violações de direitos humanos na ditadura”, afirmou o grupo, em setembro, a Opera Mundi.
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Reprodução/ARD
Empresa lamentou ‘profundamente as violações de Direitos Humanos ocorridas’
Envolvimento da Volks com a ditadura
Segundo o relatório elaborado em 2017 pelo historiador Christopher Kopper, da Universidade de Bielefeld – contratado pela própria Volks -, a empresa “foi irrestritamente leal ao governo militar e compartilhou seus objetivos econômicos e de política interna” com o regime. “A correspondência com a diretoria em Wolfsburg evidenciou até 1979 um apoio irrestrito ao governo militar que não se limitava a declarações de lealdade pessoais”, afirma.
De acordo com Kopper, a chefia da segurança da Volks tinha relações diretas com os agentes da repressão e as ações da ditadura eram de conhecimento tácito da diretoria da empresa.
“Em 1969, iniciou-se a colaboração entre a segurança industrial e a polícia política do governo (DEOPS), que só terminou em 1979. Essa colaboração ocorreu especialmente através do chefe do departamento de segurança industrial Ademar Rudge, que, devido a seu cargo anterior como oficial das Forças Armadas, sentia-se particularmente comprometido com os órgãos de segurança. Ele agia por iniciativa própria, mas com o conhecimento tácito da diretoria”, concluiu o historiador.
Ex-funcionário da Volks confirmou torturas
Em entrevista a Opera Mundi, o ex-funcionário Lúcio Bellentani confirmou ter sofrido torturas dentro da fábrica da Volks, em junho de 1972. Bellentani foi preso e agredido em uma sala no Departamento Pessoal da VW e só tomou conhecimento da acusação depois de um ano detido. Bellentani era membro do Partido Comunista Brasileiro e ativista sindical quando foi preso e torturado.
“Estava na minha bancada de trabalho quando fui surpreendido com um cano de metralhadora nas costas, me pegaram, me algemaram e me conduziram para o departamento pessoal, e lá eu comecei a ser espancado e torturado, dentro da empresa. Depois fui para o DOPS [Departamento de Ordem Política e Social], onde permaneci por 8 ou 9 meses, sem registro, sem coisa nenhuma”, conta.
“Depois de um ano preso, quando foi o julgamento, fui absolvido por falta de provas. Posteriormente, fui condenado em Brasília a dois anos de prisão e acabei cumprindo um ano e oito meses, sob a acusação de ativismo sindical e organização de uma célula do Partido Comunista dentro da empresa”, diz.
Ditadura e Volks promoveram ‘maior incêndio da história’
Em 1975, um satélite ainda muito rudimentar da Nasa, a Agência Espacial Norte-Americana, havia detectado um incêndio de grandes proporções na área sudeste da Amazônia, uma área especialmente sensível para a ditadura militar brasileira. A mata estava queimando na fazenda de gado da Volkswagen, a Fazenda do Vale Cristalino, também chamada de Companhia Vale do Rio Cristalino. O assunto vinha sendo tratado com cautela pelos militares desde que a empresa alemã havia adquirido, com os empréstimos e benesses da Ditadura, uma área imensa no Araguaia para montar uma gigantesca fazenda de gado.
Desde 1974, a Amazônia queimava – e os governos alemão e brasileiro sabiam. Rumores a respeito das fotos de satélite se espalharam pela comunidade científica mundial. Uma enorme mobilização de cientistas e pesquisadores do Brasil e fora passou a pressionar o governo para saber as razões de incêndio de tão grandes proporções estava acontecendo na Amazônia, nas terras da fazenda da Volks. Desde julho de 1975, os cientistas brasileiros estavam alertas. Naquela ocasião, havia acontecido o 27º Congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em que se questionou o governo militar a respeito das práticas de desmatamento realizadas pela Volks na sua fazenda. Paulo Nogueira Neto chefiava a Secretaria de Meio Ambiente (SEMA) do governo do general Ernesto Geisel e teve de responder às perguntas de um grupo aguerrido de cientistas norte-americanos, alemães e brasileiros a respeito dos contínuos incêndios da Fazenda do Vale do Rio de Cristalino. A Volks era acusada de montar o projeto mais “antiecológico do mundo” e isso não era segredo para ninguém.
A história da fazenda frequentava os jornais e a televisão fazia alguns anos. Em 1971, anúncios publicados na grande imprensa, pagos pelo governo via Sudam, Ministério do Interior e Banco da Amazônia, exibiam um robusto touro com a seguinte mensagem: “Volkswagen produzido na Amazônia”. A alusão, claro, era aos carros produzidos nas fábricas do ABC paulista.
Foi dessa maneira que começou um dos maiores desflorestamentos feitos por uma só empresa no mundo. O empreendimento era para ser considerado modelo de gestão de negócios no campo, de padrão alemão. Casas arrumadas para os funcionários, escolas, campos de recreação, igreja, médicos, dentistas, supermercados, piscinas e outras facilidades estavam incluídas no plano de construção da Fazenda do Vale Cristalino.
A ideia da Volks incluía não apenas a criação extensiva de gado, mas também a montagem um frigorífico para exportar carne para Japão, Estados Unidos e Europa.
As propagadas, veiculadas inclusive na televisão, davam uma noção da grandiosidade do projeto – foram páginas e páginas de matérias e anúncios chamando o povo a admirar a “conquista da selva”, feita conjuntamente pelo governo do general Geisel e a montadora de carros alemã Volkswagen. O desmatamento era visto como sinônimo de progresso, de inovação, de tecnologia. Assim, em 1974, a Volkswagen veio a público para dizer que “orgulhosamente” havia queimado 4.000 hectares de floresta amazônica em poucos meses, “um recorde nunca igualado até agora por nenhum outro projeto similar implantado na região”.
O desastre ambiental tão propagandeado pela empresa em anúncios e entrevistas foi detectado por satélites da Nasa. A imprensa e os cientistas, agrupados em torno do então diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Warwick Kerr, soltaram várias notícias alarmantes, inclusive a de que um incêndio dessas proporções poderia derreter calotas polares, inundar Manaus, causar uma mudança climática mundial.
Na época, a boa vontade da população com o projeto da Volkswagen mudou rapidamente. A empresa passou a ser acusada de um crime ambiental de proporções enormes, um verdadeiro crime contra a humanidade. O incêndio em larga escala passa a ser um indicador do modo como as empresas estrangeiras exploravam e destruíam as riquezas do país. E, mesmo sob o terror mantido pelo governo Ernesto Geisel, quando a prática de desaparecimento de opositores atinge seu auge, os parlamentares do MDB encabeçaram uma campanha contra as fazendas doadas a empresas estrangeiras e, em espacial, contra a Volkswagen.
Leia a nota da Volkswagen publicada neste domingo (14/03):