Sábado, 26 de abril de 2025
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“Não matei ninguém. Não sou um criminoso e nem um delinquente. Sou um homem só. Aposentado. Tenho apenas minha mulher, que hoje vive sozinha.” Foi assim que Jorge Néstor Troccoli, ex-fuzileiro naval uruguaio, escolheu abrir sua fala diante do Terceiro Tribunal de Assis, em Roma, em audiência que aconteceu na quinta-feira (03/04). Uma espécie de apelo tardio à empatia ou um exercício ensaiado de autopiedade.

Durante quase sete horas, o ex-militar acusado de crimes contra a humanidade durante as ditaduras do Cone Sul falou. Falou como quem tenta se salvar, que sabe que é tarde demais e como se as palavras pudessem apagar os corpos nunca encontrados. As perguntas vieram do Ministério Público da Itália, da advocacia do Estado e dos representantes que defendem os familiares das vítimas.

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O salão no qual ocorreu a audiência estava lotado. Estudantes, advogados, jornalistas da Itália, Argentina, Uruguai, Espanha e Opera Mundi, o único veículo brasileiro presente. Troccoli vestia o que talvez fosse seu melhor jaleco. Estava sentado diante do júri. Pela primeira vez, falava como réu. E falava com firmeza, como se a convicção pudesse convencer mais do que os fatos.

Prisão perpétua

Condenado à prisão perpétua em 2021 na Itália por crimes de lesa-humanidade cometidos no contexto da Operação Condor, uma rede de colaboração entre os regimes autoritários da América do Sul nos anos 70/80 e financiada pelos Estados Unidos para eliminar opositores políticos, Troccoli agora responde por outros casos: o assassinato e desaparecimento do casal ítalo-argentino Raffaella Filipazzi e José Agustín Potenza. E também de Elena Quinteros, professora uruguaia, militante e sequestrada dentro da Eembaixada da Venezuela em Montevidéu.

Ele diz que não sabe, não estava lá, não viu e que leu no jornal. Sobre a Condor, chegou a dizer que só soube “anos depois”. Que pensou ser invenção da imprensa.

A “Computadora” e o nome de Falcone

Troccoli falou de tudo. Do Corpo de Fuzileiros Navais do Uruguai (FUSNA), que segundo ele era um centro de coleta de dados, e de sua suposta função de analista de inteligência — uma espécie de bibliotecário da repressão. “Transformava informações”, disse. “Usava fontes abertas: imprensa, informantes, declarações de presos.” Declarou, com a frieza de um burocrata do horror, que criou uma técnica própria de interrogatório: a “Computadora”.

Fotografia de Jorge Néstor Troccoli com uniforme da Marinha do Uruguai

Nome de um método e um sistema que cruzavam nomes, datas, relações. Uma ferramenta de vigilância que hoje o ex-militar tenta rebatizar como se fosse apenas um algoritmo inofensivo. E, num gesto que beira o delírio — ou o cinismo absoluto — comparou seu método ao de Giovanni Falcone.

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Falcone, o juiz antimáfia. O homem que enfrentou a Cosa Nostra e pagou com a vida. A comparação caiu como chumbo. O procurador Erminio Amelio levantou-se como quem leva um tapa. “Desproporcional. Fora de lógica.” A juíza Antonella Capri interveio: “evite tocar no nome de Falcone. É um tema sensível.”

Mas talvez Troccoli acreditasse mesmo. Talvez achasse que podia vestir a toga de Falcone por cima do uniforme do FUSNA.

As vítimas, os desvios

Questionado sobre Filipazzi e Potenza, ele tentou suavizar: “foram interrogados e libertados”. “Eu a interroguei, ela era simpática. Escreveu um poema.” Como se a menção a versos pudesse dissolver a memória de uma vala comum.

Sobre Elena Quinteros, mais uma vez, lavou as mãos. “Soube pela imprensa. A operação foi do órgão de coordenação de operações anti-subversivas (O.C.O.A). A polícia nacional participou. Não sei o que aconteceu depois.”

tribunal de roma
Ex-militar uruguaio é acusado pela morte e desaparecimento de opositores durante ditaduras no Cone Sul

A fuga

Em 2007, Troccoli deixou o Uruguai e veio para a Itália. Fuga ou exílio? Ele preferiu chamar de “perseguição judicial”. Disse que os governos de esquerda mudaram as regras e que sofreu uma “execução sumária”. Falou que sua ida ao país europeu era por que buscava justiça.

Disse tudo. Menos a verdade. Porque a verdade está nos testemunhos. Está nos ossos que voltam à superfície, nas mães que nunca deixaram de procurar e na história que ele tenta, até hoje, apagar.

As provas da defesa: google e cinismo

Antes do depoimento, a Corte analisou diversos documentos apresentados pela defesa. Entre eles, trechos do livro Los Indomables, de Pablo Cohen — uma entrevista com o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica e Lucía Topolansky, pinçada em frases soltas para tentar insinuar que falsas acusações seriam possíveis.

Também foram entregues declarações antigas, um artigo anônimo do jornal espanhol El País e uma cópia do livro Computadora, em espanhol. Ao notar que o livro não estava traduzido, a juíza perguntou: “mas… e a tradução?”. A resposta da defesa de Troccoli foi: “podemos usar o Google.”

O procurador Amelio foi categórico: “é degradante tratar entrevistas como prova. As testemunhas estão vivas. Se quer usá-las, que as traga para depor.” Já Silvia Calderoni, advogada da Argentina, foi ainda mais clara: “irrelevante, na melhor das hipóteses. Inadmissível, na pior.”

Agora, o fim se aproxima

A Corte decidirá em 13 de maio se aceita as provas da defesa. No mesmo dia, começam os argumentos finais. A sentença está marcada para o dia 27 de maio.