Na mesma semana em que Narciso de Férias, documentário onde Caetano Veloso relembra sua prisão nos anos 1968, fez sua estreia mundial no 77º Festival de Cinema de Veneza, acontece a penúltima audiência do processo Condor, que tramita em uma corte de Roma, e julga pela primeira vez na história a participação de agentes brasileiros em crimes cometidos durante a ditadura.
O longa é uma realização Uns Produções, produzido por Paula Lavigne, e coproduzido pela VideoFilmes, de Walter Salles e João Moreira Salles. O filme foi exibido fora da competição e está disponível, no Brasil, em plataformas de streaming.
O festival foi o primeiro a ser presencial após o período da quarentena italiana decretado por causa da pandemia de coronavírus. Como o Brasil ainda está entre os países com restrições de ingresso na Europa, tanto Caetano, quanto os produtores e diretores do filme não puderam comparecer ao evento.
A edição deste ano foi bastante limitada. As salas, que lotavam em edições passadas, receberam a metade do público. Até na sala de imprensa a entrada foi regulada. Todo mundo usava máscara, inclusive nos espaços abertos.
Nos 83 minutos de duração do documentário, o cantor baiano faz um relato íntimo e relembra, emocionado, os 54 dias que ficou preso durante a ditadura militar. Ele e Gilberto Gil foram retirados de suas casas em São Paulo no dia 27 de dezembro de 1968, 14 dias depois de decretado o AI-5. Ficaram uma semana em solitária e depois foram transferidos para celas com outros prisioneiros.
Caetano conta que, após uma semana dentro de uma cela minúscula, ele quase surtou e passou a duvidar de sua própria existência fora daqueles metros quadrados. “Eu comecei a achar que a vida era aquilo ali. Só aquilo. E que a lembrança do apartamento, dos shows, da vida lá fora era uma espécie de sonho que eu tinha tido”, diz ele no filme.
No meio daquele realismo absurdo em que estava vivendo, ficou feliz quando foi transferido para uma cela com outras pessoas. “Fiquei tão feliz de ver gente”, diz o músico. Durante todo o tempo de prisão, ele não recebeu explicações do regime sobre o motivo de sua detenção. Até que, finalmente, dias antes de ser liberado, foi interrogado e descobriu que a ditadura o havia acusado de fazer “terrorismo cultural”.
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Em documentário, Caetano relata o que passou nos 54 dias em que esteve preso
Ao ler para a câmera algumas passagens de seu interrogatório, Caetano ri de nervoso e de ver por escrito o absurdo que foi a sua detenção. Ele ressalta o momento em que lhe foi perguntado se havia cantado o hino nacional com a melodia de Tropicália. Caetano respondeu que era impossível, pois os versos do Hino são decassílabos, enquanto os de Tropicália, música composta e cantada por ele, têm oito sílabas poéticas. Além disso, a acentuação poética é diferente.
Ele relembra uma frase dita por Rogério Duarte, artista gráfico tropicalista logo que foi solto: “Quando a gente é preso, é preso para sempre”. Acho que é assim mesmo”, afirma no filme.
Processo Condor julga brasileiro por crimes da ditadura
João Moreira Salles, um dos coprodutores do longa, declarou ao El País que “este é um filme sobre o Brasil de antes e talvez de amanhã. Os fantasmas continuam entre nós”, afirmou.
No país onde ainda prevalece a lei da anistia, os crimes cometidos pelo regime militar não podem ser julgados. Mas, se o Brasil não faz, uma corte de Roma o está fazendo há anos e, nesta sexta (11/09), às 14h30 do horário italiano (9h30 em Brasília), acontece aquela que deve ser a penúltima audiência antes da sentença que pode condenar um agente da repressão à prisão perpétua.
O caso julga a participação do gaúcho Átila Rohrsetzer no desaparecimento do ítalo-argentino Lorenzo Viñas. Na época dos fatos, 1980, o gaúcho era diretor da Divisão Central de Informações, do Rio Grande do Sul.
Vinãs, assim como Caetano, foi preso, mas o argentino não teve o mesmo destino. Foi morto e se tornou um desaparecido. Seu corpo nunca foi encontrado. A história dele se soma a de outros 25 cidadãos com descendência italiana que foram vítimas de agentes das ditaduras do cone sul durante a época de atuação da Operação Condor.
A Condor foi uma rede de colaboração entre as agências de inteligência das ditaduras sul americanas que sequestrava, prendia, torturava e assassinava opositores dos regimes de opressão.
Inicialmente, em 2015, quando a denúncia foi apresentada, os acusados eram quatro, mas três faleceram no andamento do julgamento: João Osvaldo Leivas Job era secretário de Segurança do Rio Grande do Sul e faleceu em 11 de novembro de 2019; Carlos Alberto Ponzi chefiava a Agência do Serviço Nacional de Informações (SNI) em Porto Alegre e morreu em 20 de abril do ano passado, e Marco Aurélio da Silva Reis, delegado de polícia, cobria o cargo de diretor do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) gaúcho e morreu em 2 de junho de 2016.